São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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Opinião

Como preencher a lacuna do dólar

Moeda americana não perderá seu papel central, mas pode ser suplementada por ativos como o yuan e a divisa do FMI

MOHAMED EL-ERIAN
RAMIN TOLOUI
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

TORNOU-SE moda especular sobre o futuro do dólar dos Estados Unidos como moeda de reserva mundial. Em meio a uma queda média de 10% nos últimos seis meses, os analistas tendem a favorecer uma de duas conclusões. Alguns deles argumentam que, já que não existe maneira de substituir alguma coisa por nada, o papel mundial do dólar está garantido. Outros acreditam que as perspectivas dos Estados Unidos em médio prazo são agora incompatíveis com esse papel.
Como acontece com muitas outras das questões pós-crise, a realidade é bem mais complicada. E não apenas porque o dólar, longe de ocupar um desses extremos, no futuro previsível deve ficar em uma confusa posição intermediária; também é preciso considerar que a moeda é parte de um quadro mais amplo, como única fornecedora de uma série de bens públicos mundiais. Em um momento no qual o sistema mundial precisa de âncoras como essa, a incerteza sobre o dólar propõe diversas questões de política econômica importantes.
Cerca de duas décadas atrás, Charles Kindlebeger, economista hoje mais conhecido como autor de "Manias, Panics and Crashes", identificou cinco bens públicos que sustentam uma economia mundial orientada ao crescimento: (1) operar como consumidor de último recurso; (2) coordenar políticas macroeconômicas; (3) sustentar um sistema estável de taxas de câmbio; (4) agir como fonte de crédito de último recurso; e (5) oferecer financiamento contracíclico de longo prazo.
No mundo financeiro globalizado em que hoje vivemos, poderíamos acrescentar dois outros bens públicos a essa lista: oferecer um ativo sem riscos de classificação verdadeiramente AAA -para servir como referência a outros instrumentos e atividades- e oferecer mercados financeiros profundos e previsíveis, que outros países possam usar a fim de melhorar seus processos de intermediação financeira.
Pouco antes da crise, os Estados Unidos serviam como provedores incontestes de todos esses bens públicos. Mas, já que a crise nasceu no centro, e não na periferia do sistema mundial, agora quase todos esses bens parecem menos sólidos. Como resultado, surgem duas questões de política econômica que precisam ser decididas: primeira, quais desses bens públicos podem ser restaurados, quais deles terão de ser fornecidos de forma conjunta e quais deles precisarão ser substituídos; e, segunda, de que maneira isso vai transcorrer.
Quanto à questão de que bens podem ser restaurados, restabelecer a credibilidade e a previsibilidade dos mercados financeiros norte-americanos requer uma reforma bem conduzida da fiscalização financeira e um programa confiável de médio prazo para conter o deficit orçamentário e limitar o crescimento da dívida dos Estados Unidos.
Quanto à questão dos bens públicos que poderão ser fornecidos de maneira conjunta, a expansão do papel do G20 (grupo de 19 grandes economias mais a União Europeia) e a agenda de reforma do FMI sublinham até que ponto a administração da política econômica mundial aspira a se tornar mais inclusiva. Isso é positivo. No entanto, ainda não se sabe se esses fóruns terão força suficiente para resolver divergências políticas e convencer governos a assumir responsabilidades compartilhadas.
Também deveríamos antecipar, para os próximos anos, uma discussão mais ampla sobre novos tipos de ativos de reserva. Embora a discussão deva incluir veículos supranacionais (como a expansão das funções dos Direitos Especiais de Saque do FMI), a questão mais importante seria o uso mais amplo de moedas como o yuan. Essas opções não servirão para substituir o dólar dos Estados Unidos em seu papel central, mas poderão suplementá-lo.
Existe um bem público que precisará ser substituído: o papel central que os Estados Unidos desempenhavam como propulsor do crescimento mundial. Esse papel, agora, está restrito pelas dívidas dos domicílios norte-americanos. Uma economia mundial sustentável precisa de outras grandes fontes de demanda interna, especialmente em países como a China, que tem por foco histórico o crescimento propelido por exportações.
A maneira pela qual essas transições devem ocorrer é muito importante. Um risco é que agentes fundamentais resistam a essas mudanças seculares e tentem reconstituir um sistema desatualizado que já não se enquadra à realidade pós-crise. No outro extremo, está o risco de que as grandes potências ajam isoladamente, deixando de lado uma coordenação efetiva de política e adotando medidas mais nacionalistas, como uma administração agressiva do câmbio ou do comércio externo, e protecionismo financeiro.
As melhores defesas contra esses desfechos são reconhecer cedo os riscos de que aconteçam e a ação coordenada como resposta. As grandes potências econômicas precisam formular suas expectativas e suas estratégias de política econômica de maneira que ela se enquadre aos contornos alterados da economia mundial. Também precisam administrar ativamente as mudanças de política econômica em nível nacional e multilateral, de maneira a ampliar a base de provisão dos bens públicos mundiais.


MOHAMED EL-ERIAN e RAMIN TOLOUI são, respectivamente, presidente-executivo e vice-presidente executivo do fundo Pimco.
Tradução de PAULO MIGLIACCI


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