São Paulo, sexta-feira, 08 de dezembro de 2000

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A ÁGUIA POUSOU
O país talvez não cumpra a meta prescrita por Alan Greenspan, presidente do BC norte-americano

EUA correm risco de aterrissagem dura

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

N inguém pode ter ganho muito dinheiro apostando contra Alan Greenspan. Mas o inexpugnável chairman do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), está envolvido em sua tarefa talvez mais espinhosa até hoje: reduzir a velocidade do superpetroleiro Estados Unidos e ao mesmo tempo evitar os escolhos de uma recessão.
A maior parte das pessoas esperam, com confiança, que ele tenha sucesso. No entanto, a probabilidade de fracasso é elevada.
De acordo com a mais recente "Perspectiva Econômica" da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a demanda doméstica real dos Estados Unidos cresceu a um ritmo médio anualizado de 5,3% entre 1997 e 2000.
Ao longo do mesmo período, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) real ficou em média em 4,6%. Já que até mesmo esse impressionante ritmo de expansão ficou abaixo da demanda, o resultado foi um aumento sustentado no déficit em conta corrente norte-americano, que passou de apenas 1,6% do PIB em 1996 para os 4,3% projetados para este ano.
Ainda que a OCDE tenha elevado sua projeção sobre a taxa potencial de crescimento econômico a 4% ao ano, ela estima que o atual diferencial de produção -o desvio entre o PIB real e o PIB potencial, como porcentagem deste último- fique em 2,5%.

Receita do Greenspan
Assim, a demanda excedente é demonstrada tanto no déficit em conta corrente quanto na exploração insustentável dos recursos econômicos domésticos.
Diante desse pano de fundo, a queda na atividade econômica do terceiro trimestre, quando o crescimento caiu para um ritmo anualizado de 2,4%, é exatamente aquilo que Greenspan receitou.
O grande risco que ele corre é de que o impacto dessa perda de ímpeto econômico sobre a confiança dos investidores e consumidores cause uma crise imediata dado o imenso déficit financeiro acumulado pelo setor privado hoje -ou seja, seu excedente de investimentos em relação à poupança.
Isso aconteceu a um número considerável de outras economias de alta renda ao longo dos últimos 20 anos. O resultado universal para elas foi uma recessão.

Vulnerabilidade
Discuti essa vulnerabilidade em um recente artigo para a revista "Foreign Policy". Entre 1992 e 2000, o setor privado dos EUA caminhou de um superávit financeiro equivalente a 5% do PIB, cerca de dois pontos percentuais acima de sua média no período 1986-1993, para um déficit sem precedentes históricos da ordem de pouco mais de 5% do PIB.
Essa oscilação de 10% no balanço financeiro do setor privado dos Estados Unidos, em relação ao PIB, por sua vez, foi o principal propulsor de demanda na economia do país e, em volume significativo, para o resto do mundo.
Por trás dessa virada no saldo financeiro do setor privado norte-americano temos tanto uma alta na proporção de investimentos privados e uma queda na proporção de poupança privada.
Neste ano, o investimento do setor privado deve atingir 18,5% do PIB, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, 3,3% acima de sua média no período 1986-1993. Enquanto isso, a poupança do setor privado deve ficar em 13,4% do PIB, bem abaixo do nível de 17,9% registrado entre 1986 e 1993.
Por que o investimento privado norte-americano vem demonstrando tamanho vigor e a poupança privada é tão débil? A resposta é a confiança, como demonstrada -e reforçada- pelos preços em disparada das ações.
De agosto de 1994 a agosto de 2000, o patrimônio real representado pelas ações do mercado norte-americano cresceu em US$ 11,4 trilhões, o equivalente a mais de um ano do PIB dos EUA.

Poupança X ações
O impacto desse enorme aumento no valor nominal da poupança é difícil de determinar. Mas deve ter sido substancial.
Por que as pessoas deveriam se incomodar em poupar tanto no passado quando o mercado de ações lhes deu, de maneira indolor e em prazo de apenas seis anos, um aumento de patrimônio superior ao da poupança bruta acumulada (sem sequer mencionar a poupança líquida) no mesmo período?
Mas a valorização cada vez mais alta das ações não só oferecia um bom motivo para reduzir a poupança como também representava um estímulo ao investimento.
A queda do setor privado norte-americano ao déficit financeiro é reflexo de um círculo virtuoso: pressão inflacionária limitada; lucratividade em alta e crescimento da produtividade; otimismo entre os consumidores e investidores; valores em disparada para as ações; a melhora da posição fiscal; poderosa demanda externa por ativos nos EUA; um dólar forte; e daí voltamos uma vez mais à pressão inflacionária limitada.
A questão agora é determinar se o recente colapso no valor das ações de tecnologia, combinado à queda do crescimento econômico, pode transformar o círculo, de virtuoso em vicioso.
Em outros países de alta renda que foram atingidos por declínios significativos nos preços dos ativos, as viradas no saldo financeiro líquido do setor privado também chegaram a até 10% do PIB em prazo de poucos anos.
Isso traria o saldo financeiro do setor privado norte-americano ao ponto em que estava em 1992. Uma reversão dessa ordem pode se seguir a um grande colapso da confiança. Isso, por sua vez, seria refletido em -e multiplicado por- uma nova grande queda nos preços das ações.

Experiência japonesa
Já que o mercado, excluindo as ações de tecnologia, mídia e telecomunicações, continua a ver negociações por valores historicamente altos em termos da relação preço/lucro das ações -ainda que os lucros estejam nos seus picos cíclicos e a economia esteja perdendo força-, os riscos de que isso aconteça não podem ser ignorados.
Os otimistas insistem em que as ferramentas da política fiscal e monetária, combinadas ao ajuste do balanço externo, poderiam compensar o impacto sobre o crescimento econômico de uma reacomodação do setor privado. Formalmente, isso é correto, mas a experiência japonesa e britânica sugere que pode ser uma meta difícil de atingir.

No Reino Unido
No Reino Unido, por exemplo, o saldo financeiro geral do governo despencou de um superávit de pouco menos de 1% do PIB, em 1989, para um déficit de 8% apenas quatro anos depois.
De acordo com a OCDE, cinco pontos percentuais dessa deterioração refletiam uma política fiscal deliberadamente expansiva. Mesmo assim, a economia passou por uma severa contração. De forma semelhante, o saldo financeiro geral do governo japonês caiu de um superávit de pouco mais de 3% do PIB em 1990 e 1991 para um déficit de 7% no ano passado.
Mais de oito pontos percentuais dessa deterioração refletem um relaxamento deliberado da política fiscal. Mas mesmo assim o Japão está completando uma década de estagnação.
Não é plausível que a política fiscal dos Estados Unidos seja usada de maneira agressiva o bastante para compensar mais que uma pequena oscilação no saldo financeiro líquido do setor privado, se bem que se George W. Bush for presidente, ele talvez tente.
Os chamados estabilizadores fiscais embutidos -a queda na arrecadação tributária e os aumentos nos gastos que se seguem às recessões- simplesmente atenuariam o impacto, ainda que ao preço de um retorno aos grandes déficits orçamentários.
A política monetária pode ser ainda menos efetiva. No contexto de um colapso dos mercados de ações, o setor domiciliar iria querer reconstruir seu patrimônio, e não assumir mais dívidas. A disposição de investir do setor corporativo seria contida pela queda no valor das ações e no ritmo do crescimento econômico.
O impacto imediato da adoção de uma política monetária muito mais relaxada provavelmente atingiria as taxas de câmbio e as contas externas. Mas podem surgir dificuldades mesmo ali.
O Fed pode se ver restrito, por medo de um dólar fraco demais. Em 1999, um déficit em conta corrente de US$ 339 bilhões foi mais que financiado pelo influxo líquido de US$ 228 bilhões em investimentos estrangeiros em títulos não-governamentais norte-americanos, e US$ 130 bilhões em investimento estrangeiro direto.
Se esse influxo for revertido e se transformar em fuga de capitais, os EUA teriam de financiar tanto a saída de capitais quanto seu déficit em conta corrente.
Isso só poderia ser feito com o influxo violento de grandes montantes de capital especulativo de curto prazo ou por aquisições de dólares de parte de governos e bancos centrais estrangeiros.

Exportar problemas
Além do mais, até o ponto em que os EUA são capazes de compensar uma recessão melhorando seu balanço externo, eles estarão na verdade exportando seus problemas para o resto do mundo.
Os Estados Unidos precisam agora agir de maneira suave para conter o crescimento da demanda e da produção sem abalar a confiança implícita da economia.
Para que isso possa acontecer, o setor privado norte-americano precisa continuar capaz de -e disposto- a manter seu déficit financeiro sem precedentes. Possível? Sim. Certo? "Dificilmente" é a única resposta aceitável.

Tradução de Paulo Migliacci

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