UOL


São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Brasil, florão da América

RUBENS RICUPERO

Em matéria de desigualdade, não se nota divergência apreciável de padrões entre norte e sul da América Latina, conforme ocorre, por exemplo, na crescente dependência econômica e comercial em relação aos Estados Unidos. No livro sobre distribuição da renda na região, publicado pela Cepal em 2001, o autor, Samuel A. Morley, relaciona, como os países de maior desigualdade pelo grau e a persistência, o Brasil, o Chile, a Guatemala, Honduras, o México e o Panamá, dois do sul e quatro do norte. Em outra passagem, assinala que "a desigualdade subiu abruptamente" (nos anos 1980) "nas maiores economias da região -Argentina, Brasil, Chile e México- e não mostrou nenhuma tendência a declinar após 1990". O panorama é, portanto, uniforme, constante e deprimente.
Na mesma obra se afirma que, independentemente do método de medição, a América Latina tem, em média, a distribuição mais desigual do globo. Estudo de Deininger e Square para o Banco Mundial (1996) comparou os coeficientes Gini de desigualdade para 108 nações ao longo de 30 anos. Resultados: 1) a distribuição na América Latina não é só a mais desigual, mas assim tem sido ao menos desde 1960 e, em realidade, desde que se começou a dispor de estatísticas sobre o assunto; 2) no Oriente Médio e na África, as duas outras áreas com índices comparáveis, a desigualdade caiu substancialmente, enquanto na América Latina, após redução ligeira nos anos 1970, a desigualdade se agravou a partir dos anos 1980, sendo a única região na qual essa taxa permaneceu imobilizada, sem mudança, no elevado patamar inicial.
A melhoria passageira coincidiu com o último período de crescimento firme e difundido por todo o continente, 30 anos atrás. As crises financeiras e suas sequelas, após 1980, provocaram uma inversão e, em 1990, todos os indicadores haviam sofrido um retrocesso de três décadas; quase um terço do século 20 foi desperdiçado caminhando para trás em um dos aspectos mais retrógrados da herança do passado.
O "Panorama Social" 2000-2001, da Cepal, constata que, apesar do aumento do gasto social e da preocupação com a distribuição, fracassamos em obter melhoria substancial nessa área, não existindo, tampouco, sinais promissores para crer que a situação mudará significativamente no curto ou médio prazos. Dos 17 países analisados, só dois (Honduras e Uruguai) fecharam a década de 1990 com progresso em reduzir a desigualdade. Mesmo nas poucas economias que registraram crescimento satisfatório, como a chilena, não se conseguiu diminuir o elevado grau de concentração e de disparidade social. É bom recordar que esse era o retrato do problema antes da crise na Argentina, Venezuela e Uruguai, assim como de suas devastadoras consequências em termos de recessão, desemprego e desigualdade.
Sem se aventurar no terreno da interpretação histórico-social, Morley limita-se a diagnosticar as causas imediatas da desigualdade. Primeiro, desequilíbrio educacional, que faz da América Latina o continente com o mais alto diferencial entre os dotados de educação superior e o resto. Enquanto a Ásia investiu em universalizar a educação primária e secundária, os latinos se resignaram à evasão escolar a partir do primário, utilizando o dinheiro poupado com o secundário a fim de expandir as universidades para as elites. Segundo, a região tem a distribuição de terra mais iníqua do mundo. Esse padrão, somado à expansão e ao êxodo de uma população rural sem qualificação, gera oferta excessiva de mão-de-obra de baixa produtividade, deprimindo os salários (quando há emprego).
O fator mais importante é o abismo que separa a renda média dos ricos dos demais degraus da pirâmide, muito maior do que nas demais regiões. Os ricos na América Latina são muito mais ricos em relação ao restante da população do que em outras partes. Os 10% no topo são responsáveis por dois terços a três quartos da desigualdade total na maioria dos países examinados. Existem, é claro, diferenças sensíveis entre a renda dos que estão no fundo do poço e os graus intermediários e superiores, mas essas diferenças são similares às de outros continentes. O que de fato caracteriza a particularidade latino-americana é a imensa, incomensurável distância entre os "happy few" e o resto.
Em quase todos esses aspectos, é o Brasil espelho fiel da situação regional. O nosso país tem o duvidoso título de possuir a sociedade mais desigual no continente mais desigual do globo. O "Panorama" da Cepal 2000-01 registra que o coeficiente Gini brasileiro (0,64) é o mais elevado de todos, seguido por Bolívia, Nicarágua e Guatemala. Entre nós, a renda dos 10% mais ricos é 32 vezes maior que a dos 40% mais pobres, ao passo que essa relação para a região como um todo é em média de 19,3 vezes. Exceto na Costa Rica e no Uruguai, os 10% mais ricos controlam por volta de 30% da renda, o que no Brasil sobe a 47,1%. Somos também o único país onde mais da metade da população, 54,8%, para ser preciso (1999), tem renda inferior a 50% da média.
É fácil continuar a alinhar dados desse tipo, mas o exercício seria supérfluo pois as conclusões são claras. Não é possível negar que nos últimos 20 anos as crises financeiras, as recessões e o crescimento errático ocasionaram retrocesso na luta contra a pobreza, a indigência, o desemprego e a desigualdade. Algo está errado com a receita. É preciso corrigi-la e, ao planejar reformas indispensáveis como a dos impostos e do mercado de trabalho, evitar medidas que agravem ainda mais a desigualdade, como foi constatado pelas análises da Cepal em países vizinhos.
 
Retificação: cometi um engano nos artigos "Explosões de desespero" (23/02/03) e "Os caminhos do retrocesso" (16/02/03). A taxa de pobreza da população da América Latina no início dos anos 1980 era de 40,5% do total, e não 35%, como escrevi, e a de indigência era de 18,6% (não 15%). A de pobreza subiu para 48,3% em 1990, baixando até 1997, quando voltou a subir. Em 2002 estava em 44%, conforme consta no artigo. Para a indigência, a taxa subiu a 22,5% em 1990, baixou a 18,5% em 1999 e era estimada em quase 20%, no ano passado, como está no artigo. Retirei esses dados do "Panorama Social" 2000-01 e 2001-02, da Cepal. A conclusão é, na substância, a mesma: pioramos em média, comparados a 1980.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


Texto Anterior: Tendências internacionais: Guerra no Iraque camufla disputa entre euro e dólar
Próximo Texto: Lições contemporâneas: A outra batalha na OMC
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.