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Ciências da vida nada têm de
exatas; mercado deve ficar atento
MARCELO LEITE
Editor de Ciência
O anúncio desta semana de que
a empresa Celera Genomics havia
dado o primeiro passo na leitura
do genoma humano deu novo
alento ao índice Nasdaq e às ações
da Celera. De repente, nem tudo
era Internet e ponto.com sobre a
Terra. Há também DNA, genes e
bases nitrogenadas no sangue da
nova economia. E muito espaço
para novas fibrilações nesse nicho
dos mercados.
Memória curta constitui um risco ponderável para o investidor
que só tem olhos para o futuro,
além de uma imagem desfocada
da bonança biotecnológica. Cabe
lembrar que a própria Celera esteve no centro de uma baixa violenta, dias atrás, quando uma declaração conjunta de Bill Clinton e
Tony Blair lançou dúvidas sobre a
propriedade intelectual dos próprios resultados.
Esse é um capítulo, aliás, ainda
em aberto. Os mesmos cientistas
que armaram o comunicado
Clinton-Blair e chefiam o Projeto
Genoma Humano, concorrente
da Celera, são contrários ao reconhecimento de patentes para sequências de DNA. Descoberta
não é invenção, defendem. Patentes, só para genes incluídos em
inovações, como novas drogas ou
testes de diagnóstico.
Só essa incerteza já constitui
combustível suficiente para incendiar a ansiedade de qualquer
investidor incomodado com os
preços estratosféricos de ações
como as da Celera. Há mais.
Companhias como Cell Genesys, Avigen e Targeted Genetics, especializadas em terapias
genéticas (grosso modo, remendar genes defeituosos causadores
de doenças), viram a cotação de
suas ações saltar até dez vezes, nos
últimos meses. Ora, as geneterapias ainda são um sonho. Nenhum dos mais de 300 experimentos realizados em dez anos
deu ainda resultados concretos.
Pior, a morte do paciente Jesse
Gelsinger, em setembro, causou
discussão nos EUA sobre as justificativas éticas desses ensaios. Do
debate público podem resultar
novas regulamentações e os mercados, como se sabe, têm aversão
a esse tipo de "ingerência".
Por outro lado, muito da expectativa criada com o sequenciamento do genoma humano parece exuberante e irracional, para
quem acompanha a ciência. Dizer
que pode trazer a cura da Aids excita qualquer especulador, mas o
investidor prudente deve perguntar-se: quando?
Algumas novas drogas e até geneterapias podem surgir já nos
próximos anos, mas poucas. Depois do sequenciamento vem a
anotação; depois da anotação, a
descrição de cada gene; depois da
descrição, a identificação de sua
função e da(s) proteína(s) que codifica; depois da função, inventar
um forma de utilizá-la.
Fazer isso com um gene de uma
doença pode ser factível. Revolucionar a medicina são outros quinhentos.
É preciso refrescar a memória,
por fim, com o caso dos alimentos
transgênicos. A resistência -justificada ou não- contra os famigerados OGMs (organismos geneticamente modificados) pode
sepultar essa biotecnologia antes
mesmo de ela ter a chance de tentar cumprir sua promessa de acabar com a fome do mundo.
Em suma, a genética tem um
enorme potencial tecnológico e
de mercado, mas ele tem encontrado limites nas crenças e valores
sociais sobre o que seja a vida e na
complexidade do próprio mundo
vivo. Chega mesmo a haver desconfiança, fora dos mercados,
com essa revolução perturbadora. É bom ficar atento a ela.
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