São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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Ciências da vida nada têm de exatas; mercado deve ficar atento

MARCELO LEITE
Editor de Ciência

O anúncio desta semana de que a empresa Celera Genomics havia dado o primeiro passo na leitura do genoma humano deu novo alento ao índice Nasdaq e às ações da Celera. De repente, nem tudo era Internet e ponto.com sobre a Terra. Há também DNA, genes e bases nitrogenadas no sangue da nova economia. E muito espaço para novas fibrilações nesse nicho dos mercados.
Memória curta constitui um risco ponderável para o investidor que só tem olhos para o futuro, além de uma imagem desfocada da bonança biotecnológica. Cabe lembrar que a própria Celera esteve no centro de uma baixa violenta, dias atrás, quando uma declaração conjunta de Bill Clinton e Tony Blair lançou dúvidas sobre a propriedade intelectual dos próprios resultados.
Esse é um capítulo, aliás, ainda em aberto. Os mesmos cientistas que armaram o comunicado Clinton-Blair e chefiam o Projeto Genoma Humano, concorrente da Celera, são contrários ao reconhecimento de patentes para sequências de DNA. Descoberta não é invenção, defendem. Patentes, só para genes incluídos em inovações, como novas drogas ou testes de diagnóstico.
Só essa incerteza já constitui combustível suficiente para incendiar a ansiedade de qualquer investidor incomodado com os preços estratosféricos de ações como as da Celera. Há mais.
Companhias como Cell Genesys, Avigen e Targeted Genetics, especializadas em terapias genéticas (grosso modo, remendar genes defeituosos causadores de doenças), viram a cotação de suas ações saltar até dez vezes, nos últimos meses. Ora, as geneterapias ainda são um sonho. Nenhum dos mais de 300 experimentos realizados em dez anos deu ainda resultados concretos.
Pior, a morte do paciente Jesse Gelsinger, em setembro, causou discussão nos EUA sobre as justificativas éticas desses ensaios. Do debate público podem resultar novas regulamentações e os mercados, como se sabe, têm aversão a esse tipo de "ingerência".
Por outro lado, muito da expectativa criada com o sequenciamento do genoma humano parece exuberante e irracional, para quem acompanha a ciência. Dizer que pode trazer a cura da Aids excita qualquer especulador, mas o investidor prudente deve perguntar-se: quando?
Algumas novas drogas e até geneterapias podem surgir já nos próximos anos, mas poucas. Depois do sequenciamento vem a anotação; depois da anotação, a descrição de cada gene; depois da descrição, a identificação de sua função e da(s) proteína(s) que codifica; depois da função, inventar um forma de utilizá-la.
Fazer isso com um gene de uma doença pode ser factível. Revolucionar a medicina são outros quinhentos.
É preciso refrescar a memória, por fim, com o caso dos alimentos transgênicos. A resistência -justificada ou não- contra os famigerados OGMs (organismos geneticamente modificados) pode sepultar essa biotecnologia antes mesmo de ela ter a chance de tentar cumprir sua promessa de acabar com a fome do mundo.
Em suma, a genética tem um enorme potencial tecnológico e de mercado, mas ele tem encontrado limites nas crenças e valores sociais sobre o que seja a vida e na complexidade do próprio mundo vivo. Chega mesmo a haver desconfiança, fora dos mercados, com essa revolução perturbadora. É bom ficar atento a ela.



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