São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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ARTIGO

Pânico financeiro e a lei das consequências involuntárias

JEFFREY SACHS

Uma das lições que a política pública ensina repetidas vezes é a lei das consequências involuntárias. Adota-se uma medida para "consertar" um problema, apenas para vê-la criar outro problema, às vezes muito mais grave do que o primeiro. Quanto mais a fundo se analisam as crises financeiras que atingiram a Ásia Oriental, a Europa do Leste e a América Latina nos dois últimos anos, mais esses acontecimentos parecem constituir prova quase definitiva da lei das consequências involuntárias.
Embora cada crise regional tenha sido atribuída aos erros de administração dos governos dos países em desenvolvimento, na realidade boa parte da culpa -talvez a maior parte- é dos países avançados. Mais precisamente, as regras que regulamentam o sistema bancário nos países avançados podem haver provocado a crise financeira no mundo em desenvolvimento e pós-comunista.
A essência da crise financeira recente consiste no fato de que, entre 1993 e 1996, os chamados "mercados emergentes" receberam uma enxurrada de empréstimos bancários internacionais, sendo que a partir de 1997 esses capitais fugiram dos mesmos mercados emergentes. Países como Rússia, ou Indonésia, Coréia do Sul e Tailândia, no Sudeste Asiático, ou Brasil e Peru, na América Latina, puderam contrair empréstimos em condições fáceis em meados da década, mas viram esses empréstimos serem retirados, em pânico, nos últimos dois anos.
A inversão do fluxo dos empréstimos bancários é espantosa. Segundo dados recentes compilados pelo banco de investimentos JP Morgan, os bancos internacionais concederam aos 25 maiores mercados emergentes um total de US$ 100 bilhões em créditos líquidos (ou seja, empréstimos menos pagamentos) em 1995, US$ 121 bilhões em 1996 e US$ 46 bilhões em 1997, tendo exigido pagamentos líquidos de US$ 95 bilhões em 1998. A inversão da tendência foi mais acentuada na Ásia emergente: de US$ 81 bilhões em empréstimos concedidos em 1996 para US$ 84 bilhões em pagamentos líquidos em 1998.
Quando se olha por baixo da superfície, vê-se que essas grandes oscilações foram consequência de dois fatos relacionados. Em primeiro lugar, a maior parte dos empréstimos concedidos pelos bancos internacionais foi de muito curto prazo. Cerca de dois terços dos empréstimos feitos à Ásia, por exemplo, foram por períodos inferiores a um ano. Em muitos casos, inferiores a um mês.
Em segundo lugar, os bancos internacionais entraram em pânico em 1997. Resolveram que tinham de sair dos mercados emergentes o mais rapidamente possível, porque todos os outros bancos o estavam fazendo. Ninguém queria ser o último a abandonar um desses países, porque sabiam que, quando todos os outros bancos tentassem sair ao mesmo tempo, os países seriam forçados a declarar moratória. Como os empréstimos que tinham sido concedidos eram de curto prazo, puderam ser retirados quase todos ao mesmo tempo.
Por que, então, esses empréstimos foram de tão curto prazo e, portanto, tão sujeitos aos efeitos do pânico? É aqui que as consequências involuntárias exercem um papel enorme. Sob as normas internacionais que regulamentam a atividade dos bancos, redigidas pelo BIS -o banco central dos bancos centrais, com sede em Basiléia, Suíça-, os bancos precisam dispor de capital bancário suficiente. Os ativos (principalmente os empréstimos concedidos pelos bancos) não podem exceder o montante de 12,5 vezes o capital dos bancos.
Acontece que, segundo o método pelo qual são contabilizados os haveres dos bancos, as normas permitem que os bancos emprestem a outros bancos quatro vezes mais dinheiro em créditos de curto prazo que em créditos de longo prazo. Desse modo, regulamentos supostamente benignos acabam por incentivar os bancos a multiplicar seus empréstimos de curto prazo e reduzir seus empréstimos de longo prazo.
Os regulamentos parecem fazer sentido para cada banco isoladamente. Os empréstimos interbancários de curto prazo são, aparentemente, menos arriscados do que os de longo prazo. Mas, quando todo o sistema internacional se envolve com uma quantidade excessiva de empréstimos interbancários de curto prazo, a economia mundial passa a ser passível de pânico financeiro. Assim, o que faz sentido para um banco (conceder empréstimos de curto prazo) torna-se arriscado para todo o sistema mundial.
Quando começou a crise financeira no Sudeste Asiático, em meados de 1997, os países avançados e o FMI se apressaram em atribuir a culpa às vítimas, os países devedores. Disseram que esses países tinham se comportado mal. Na realidade, o problema era que o sistema internacional criara um verdadeiro "castelo de cartas", no qual uma montanha de empréstimos interbancários de curto prazo podia ser invertida de uma hora para outra, provocando o desabamento econômico dos países devedores. Mesmo hoje, Washington e Basiléia ainda não estão dando a devida atenção à tendência mundial dos empréstimos internacionais de curto prazo, e a maior parte da culpa pela crise continua sendo atribuída a suas vítimas.
Uma palavra final às vítimas. Mesmo antes de ser modificado o sistema internacional, os países podem fazer algo para se ajudar. Devem limitar sua exposição aos empréstimos bancários internacionais de curto prazo, para reduzir sua vulnerabilidade às oscilações exageradas no fluxo de empréstimos internacionais.


Tradução de Clara Allain


Jeffrey Sachs é diretor do Instituto Harvard de Desenvolvimento Internacional e professor da cadeira Gallen Stone de Comércio Internacional da Universidade Harvard. Já foi o principal assessor econômico estrangeiro dos governos da Rússia, Polônia e Bolívia.


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