|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Furtado dixit
Furtado fazia parte de uma geração consciente de que
desenvolvimento não se constrói sem riscos e desafios
NÃO ME critique, leitor, por citar demais. "A citação", escreveu Thomas Mann, "é
uma forma de agradecimento". Hoje
começo com uma de Celso Furtado,
provavelmente o maior dos nossos
economistas:
"É consensual a afirmação de que
a crise que o Brasil enfrenta tem
causas múltiplas e complexas, mas
talvez nenhuma seja de tanto peso
como o descontrole, por parte de sucessivos governos, das alavancas
econômico-financeiras. (...) Forçar
um país que ainda não atendeu às
necessidades mínimas de grande
parte da população a paralisar os setores mais modernos de sua economia, a congelar investimentos em
áreas básicas como saúde e educação, para que se cumpram metas de
ajustamento da balança de pagamentos impostas por beneficiários
de altas taxas de juros é algo que escapa a qualquer racionalidade.
Compreende-se que esses beneficiários
defendam seus interesses. O que não
se compreende é que nós mesmos
não defendamos com idêntico empenho o direito a desenvolver o país.
Se continua a prevalecer o ponto de
vista dos recessionistas -aqueles
que colocam os interesses dos nossos credores acima de outras considerações na formulação da política
econômica-, temos de nos preparar
para um prolongado período de retrocesso econômico, que conduzirá
ao desmantelamento de boa parte
do que se construiu no passado".
("Os desafios da nova geração", Revista de Economia Política, outubro-dezembro de 2004).
Essas observações, que datam de
meados de 2004, refletiam a frustração de Furtado com os rumos da política econômica no governo Lula,
que ele ajudara a eleger. Estávamos
então em pleno período "paloccista". O governo que fora eleito para
mudar mantinha na área econômica
um extraordinário grau de continuidade em relação ao governo FHC. Os
"recessionistas", para usar a expressão de Furtado, ocupavam todos ou
quase todos os postos-chave no Ministério da Fazenda e no Banco Central. As "alavancas econômico-financeiras" continuavam, na prática,
fora do controle governamental.
Desde então, o governo Lula deu
alguns passos na direção certa, como
comentei em artigos anteriores nesta coluna. Por motivos extra-econômicos, Palocci teve que deixar o cargo de ministro da Fazenda. A sua
queda, que não estava nos planos do
presidente Lula, parece ter modificado, entretanto, o equilíbrio de poder dentro do governo. Quebrou-se
um mito: caiu o "fiador" do governo
com os mercados financeiros e nada
aconteceu. Rigorosamente nada.
Com a entrada de Guido Mantega,
começou um processo de renovação
da equipe da Fazenda. No entanto, o
comando do Banco Central ainda
representa um obstáculo poderoso à
flexibilização da política econômica
e à retomada do desenvolvimento.
Corremos o risco de continuar marcando passo, submetidos à combinação desastrosa de juros altos e
câmbio sobrevalorizado.
Espero estar enganado, mas, a julgar pelo noticiário, o presidente da
República parece inclinado a contemporizar. A disputa por espaço
entre "desenvolvimentistas" e "ortodoxos" dificilmente desembocará
em uma vitória clara de um dos lados. O mais provável é uma solução
salomônica: a Fazenda continuará
"desenvolvimentista" (sem grandes
arroubos) e o Banco Central, "ortodoxo" (possivelmente com a saída
de diretores mais fundamentalistas
e alguma suavização da política monetária).
Celso Furtado morreu há dois
anos, em novembro de 2004. Se ainda fosse vivo, estaria provavelmente
impaciente com as tergiversações
do presidente reeleito. Ele fazia parte de uma geração que tinha Vargas
e Juscelino como referências políticas, ou seja, de uma geração de impacientes, de inconformados com o
subdesenvolvimento e o atraso, uma
geração plenamente consciente de
que desenvolvimento não se constrói sem enfrentar riscos e desafios.
Lula quer o desenvolvimento
("desenvolvimento será o nome do
meu segundo mandato"), mas hesita
em se livrar do peso morto da mentalidade estagnacionista. Quer promover a expansão da economia e a
distribuição da renda, mas não pretende desagradar a ninguém. Dá a
impressão de que deseja governar
com todos e para todos, inclusive
com aqueles que tentaram desestabilizá-lo e derrotá-lo nas eleições.
Quer ajudar o povo e mudar o país,
mas sem bulir com os interesses estabelecidos.
É a quadratura do círculo.
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 51, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/ Elsevier, 2005).
E-mail: pnbjr@attglobal.net
Texto Anterior: Ministério da Fazenda vai reduzir previsão de crescimento da economia para este ano Próximo Texto: Pão de Açúcar "paga" dívida e lucra menos Índice
|