São Paulo, quinta-feira, 09 de novembro de 2006

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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Furtado dixit

Furtado fazia parte de uma geração consciente de que desenvolvimento não se constrói sem riscos e desafios

NÃO ME critique, leitor, por citar demais. "A citação", escreveu Thomas Mann, "é uma forma de agradecimento". Hoje começo com uma de Celso Furtado, provavelmente o maior dos nossos economistas:
"É consensual a afirmação de que a crise que o Brasil enfrenta tem causas múltiplas e complexas, mas talvez nenhuma seja de tanto peso como o descontrole, por parte de sucessivos governos, das alavancas econômico-financeiras. (...) Forçar um país que ainda não atendeu às necessidades mínimas de grande parte da população a paralisar os setores mais modernos de sua economia, a congelar investimentos em áreas básicas como saúde e educação, para que se cumpram metas de ajustamento da balança de pagamentos impostas por beneficiários de altas taxas de juros é algo que escapa a qualquer racionalidade.
Compreende-se que esses beneficiários defendam seus interesses. O que não se compreende é que nós mesmos não defendamos com idêntico empenho o direito a desenvolver o país.
Se continua a prevalecer o ponto de vista dos recessionistas -aqueles que colocam os interesses dos nossos credores acima de outras considerações na formulação da política econômica-, temos de nos preparar para um prolongado período de retrocesso econômico, que conduzirá ao desmantelamento de boa parte do que se construiu no passado". ("Os desafios da nova geração", Revista de Economia Política, outubro-dezembro de 2004).
Essas observações, que datam de meados de 2004, refletiam a frustração de Furtado com os rumos da política econômica no governo Lula, que ele ajudara a eleger. Estávamos então em pleno período "paloccista". O governo que fora eleito para mudar mantinha na área econômica um extraordinário grau de continuidade em relação ao governo FHC. Os "recessionistas", para usar a expressão de Furtado, ocupavam todos ou quase todos os postos-chave no Ministério da Fazenda e no Banco Central. As "alavancas econômico-financeiras" continuavam, na prática, fora do controle governamental.
Desde então, o governo Lula deu alguns passos na direção certa, como comentei em artigos anteriores nesta coluna. Por motivos extra-econômicos, Palocci teve que deixar o cargo de ministro da Fazenda. A sua queda, que não estava nos planos do presidente Lula, parece ter modificado, entretanto, o equilíbrio de poder dentro do governo. Quebrou-se um mito: caiu o "fiador" do governo com os mercados financeiros e nada aconteceu. Rigorosamente nada.
Com a entrada de Guido Mantega, começou um processo de renovação da equipe da Fazenda. No entanto, o comando do Banco Central ainda representa um obstáculo poderoso à flexibilização da política econômica e à retomada do desenvolvimento. Corremos o risco de continuar marcando passo, submetidos à combinação desastrosa de juros altos e câmbio sobrevalorizado.
Espero estar enganado, mas, a julgar pelo noticiário, o presidente da República parece inclinado a contemporizar. A disputa por espaço entre "desenvolvimentistas" e "ortodoxos" dificilmente desembocará em uma vitória clara de um dos lados. O mais provável é uma solução salomônica: a Fazenda continuará "desenvolvimentista" (sem grandes arroubos) e o Banco Central, "ortodoxo" (possivelmente com a saída de diretores mais fundamentalistas e alguma suavização da política monetária).
Celso Furtado morreu há dois anos, em novembro de 2004. Se ainda fosse vivo, estaria provavelmente impaciente com as tergiversações do presidente reeleito. Ele fazia parte de uma geração que tinha Vargas e Juscelino como referências políticas, ou seja, de uma geração de impacientes, de inconformados com o subdesenvolvimento e o atraso, uma geração plenamente consciente de que desenvolvimento não se constrói sem enfrentar riscos e desafios.
Lula quer o desenvolvimento ("desenvolvimento será o nome do meu segundo mandato"), mas hesita em se livrar do peso morto da mentalidade estagnacionista. Quer promover a expansão da economia e a distribuição da renda, mas não pretende desagradar a ninguém. Dá a impressão de que deseja governar com todos e para todos, inclusive com aqueles que tentaram desestabilizá-lo e derrotá-lo nas eleições. Quer ajudar o povo e mudar o país, mas sem bulir com os interesses estabelecidos. É a quadratura do círculo.


PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 51, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/ Elsevier, 2005).
E-mail: pnbjr@attglobal.net


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