São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O Fórum Social e a democracia global

ALOIZIO MERCADANTE

Personalidades, estudantes, trabalhadores, intelectuais, políticos, entidades e movimentos da sociedade civil do mundo inteiro reuniram-se em Porto Alegre dias atrás, na segunda edição do Fórum Social Mundial, para trocar experiências, discutir os problemas derivados do processo de globalização e buscar propostas orientadas à construção de uma sociedade planetária mais justa e mais democrática, que tenha na paz um dos seus pilares fundamentais. Foram cerca de 60 mil participantes, 27 mesas de conferências sobre questões estratégicas, 100 seminários de aprofundamento e debate público de temas específicos, 39 eventos e atividades complementares e mais de 600 oficinas temáticas, que cobriram um universo extraordinariamente amplo de aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais.
Recordo que, aqui nesta Folha, comentando o significado e o propósito do primeiro Fórum, em 2001, eu dizia que sua realização era uma ousadia, mas uma ousadia necessária. Dizia também que sua função, mais do que gerar mobilizações temporárias, seria a de contribuir para despertar as energias dos povos do sul para o grande desafio que representa a construção de uma sociedade mais fraterna, que recupere o sentido da cooperação entre os povos e priorize o desenvolvimento humano e a inclusão social. Hoje é evidente que a ousadia não foi somente necessária, ela também deu certo.
A realização do Fórum foi mais do que um evento bem-sucedido. O Fórum recuperou o que de melhor existe nas raízes históricas da democracia, consolidando-se como um espaço público de discussão dos grandes problemas da humanidade, na perspectiva da construção de alternativas e na crença de que um outro mundo é possível. O Fórum foi um processo de reflexão estratégica coletiva que buscou responder a questões que envolvem os grandes desafios globais, mas -ao contrário do pensamento global dominante- de modo a valorizar não só a diversidade de visões e abordagens dessas questões e desafios como também a participação democrática da multiplicidade de atores sociais envolvidos.
O Fórum Social ocorre em um momento em que a globalização produziu um grau de internacionalização do capital e de aceleração de sua velocidade de circulação sem precedentes (o giro financeiro internacional é hoje da ordem de US$ 1,3 trilhão por dia), universalizou as informações e os valores da cultura mercantil dominante, debilitou assimetricamente os Estados nacionais, particularmente nos países periféricos, e fragilizou as instituições da democracia representativa no âmbito de cada país.
A nova ordem internacional, estruturada a partir do desmantelamento da antiga URSS, amplifica o alcance desses processos. A governança global, comandada pela potência hegemônica, concentra-se no G-8 e nas grandes corporações. As Nações Unidas foram relegadas a um papel instrumental secundário e os organismos multilaterais foram transformados em braços operacionais das políticas do centro hegemônico e das corporações financeiras internacionais. O mercado global prescinde também da democracia global.
O desemprego, a pobreza e os danos ambientais se expandem numa velocidade fantástica, tornando estéreis os avanços da tecnologia e o aumento da capacidade produtiva nos países centrais. Alguns desses estão descobrindo na informalização do mercado de trabalho, antes considerada um problema dos países periféricos, uma "solução" moderna para o seu elevado desemprego. Nos "emergentes", o quadro é dramático. O caso brasileiro, que não chegou ainda ao caos gerado pelo fundamentalismo neoliberal na Argentina, é simbólico: o lucro dos bancos cresceu como nunca (315% entre 1994 e 2001), o salário diminuiu (queda de 14 pontos desde 1997) e a exclusão aumentou. Sobre este último aspecto são ilustrativos o aumento do desemprego no âmbito nacional (quase 40% entre 1994 e 2001) e da população residente em favelas no Rio de Janeiro nos anos 90, que cresceu a um ritmo quatro vezes maior do que o restante da população do Estado.
Dentro desse quadro, o Fórum Social representou um importante passo para a construção de uma outra agenda, que coloque na ordem do dia a questão social, em suas multíplices manifestações, o problema da sustentabilidade ambiental, a temática do desenvolvimento e a da inserção solidária dos países periféricos na economia internacional. Ainda que não tenha um documento conclusivo -até porque não é esse o seu propósito-, o Fórum proporcionou a articulação de instituições, redes e movimentos sociais que podem desempenhar um papel multiplicador nos seus respectivos âmbitos de atuação. A síntese desse processo é a construção da democracia global.
Não temos ainda uma agenda acabada para canalizar nesse sentido toda a energia do Fórum Social. Mas ela está em construção. Nessa direção vai a decisão de realizar, a partir do próximo ano, fóruns regionais. Por outro lado, fortalecido pela participação de 1.115 parlamentares, a maior parte latino-americanos, oriundos de 40 países, o Fórum constituiu uma rede parlamentar internacional que busca coordenar as ações parlamentares contra a globalização (discutindo e votando a taxa Tobin simultaneamente em todos os países, por exemplo). O Fórum de São Paulo, que articula cem partidos e organizações da América Latina, pretende organizar no próximo ano um fórum partidário internacional. E o movimento latino-americano de repúdio à Alca, tal como vem sendo proposta, saiu do Fórum fortalecido e mais organizado.
Em síntese, o Fórum foi um grande instrumento de globalização da política e de revitalização das utopias. Sua mensagem de luta e de esperança ganhou neste ano uma dimensão maior: um outro mundo é, de fato, possível. Vamos construí-lo.


Aloizio Mercadante, 47, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.

Internet: www.mercadante.com.br

E-mail -dep.mercadante@camara.gov.br


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