São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

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LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A metafísica do real


Uma crise de liquidez pode gerar uma crise de crédito com efeitos desastrosos sobre a "economia real"

A CRISE financeira que assola os países desenvolvidos divide as opiniões dos especialistas. Há divergências a respeito da intensidade, da abrangência e da duração da maré vazante. Em meio ao fogo cruzado das controvérsias, não faltam analistas de boa reputação que insistem em separar a pororoca financeira da supostamente saudável situação da economia real.
Walras, Wicksell, Hayek e Milton Friedman formularam teorias distintas, mas todas elas acolheram a hipótese da separação entre os "fatores reais" e os "fatores monetários". Os chamados novo-clássicos, escorados na hipótese das expectativas racionais, proclamaram a irrelevância dos fatores monetários e decretaram que as forças reais da produtividade e da poupança são as fontes de dinamismo das economias.
Os agentes racionais que povoam os mercados sabem qual é a estrutura da economia real e sua evolução provável.
Na contramão da "visão natural-realista" das economias de mercado, Keynes se dispôs a investigar as propriedades da Economia Monetária da Produção. Nela, imperam a divisão do trabalho, a propriedade privada da empresas, o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e a moeda de crédito administrada pelos bancos. Sem a criação de meios de pagamento e o provimento de liquidez pelo sistema bancário, os empresários não podem comprar de meios de produção e pagar os salários aos trabalhadores. A economia capitalista de mercado não pode funcionar nem sequer existir.
Nessa economia, as expectativas dos empresários sobre os lucros futuros, ou seja, da captura dos ganhos proporcionados pelo aumento da produtividade social do trabalho, só são viabilizadas mediante o adiantamento de capital monetário. Isso, por sua vez, impulsiona a competição pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos.
As relações de crédito-débito e as ações geram um estoque de direitos de propriedade e de apropriação sobre a riqueza e a renda da sociedade. A avaliação desses direitos nos mercados especializados passa a comandar as condições em que o crédito é ofertado e, portanto, a criação da renda na "economia real".
A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário é crucial para o funcionamento adequado dos mercados. Ela se constitui na infra-estrutura que facilita o "clearing" e a liquidação de operações entre os protagonistas da economia monetária. A preservação dessas instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, justifica as intervenções de última instância dos bancos centrais, sob pena de uma crise de liquidez se transformar numa crise de crédito com efeitos desastrosos sobre a chamada "economia real".
O desenvolvimento da economia monetária da produção suscitou, sim, a subordinação do sistema de crédito à lógica da acumulação produtiva. Mas, ao mesmo tempo, ensejou a possibilidade de expansão acelerada do que Marx chamou de capital fictício, matriz dos episódios especulativos, crises de crédito e seu rastro de destruição de valores.


LUIZ GONZAGA BELLUZZO , 65, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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