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São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Habitação popular faz mal à saúde?

RICARDO PEREIRA LEITE

"Todos sonhamos com uma moradia digna e com uma cidade digna. Milhões de famílias brasileiras estão longe disso. Recursos existem. Deixar a situação como está custa muito mais para toda a sociedade." Luiz Inácio Lula da Silva

Perdemos a conta dos inúmeros programas governamentais de construção de habitações populares que já foram anunciados. Não obstante tantos projetos, o que se vê, na prática, é um déficit cada vez maior -mais de 5 milhões de moradias, de acordo com o último censo do IBGE, o que denota que o Estado, para fazer frente a esse desafio, não poderá prescindir da participação efetiva da iniciativa privada.
Apesar do discurso sobre a necessidade dessa parceria, não existiu até agora nenhum estimulo à produção de mercado no segmento popular. Ao contrário, o que se tem hoje é um grande desestímulo.
Conforme levantamento realizado pelo IPDM-SP (Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de Mercado), apenas 1% de todos os lançamentos imobiliários da região metropolitana de São Paulo, no período 1996 a 2001, objetivaram famílias com renda familiar inferior a R$ 1.800 mensais, as quais ocupam 62% dos domicílios atuais.
Na ânsia de subsistir em um setor da economia extremamente machucado nos últimos anos, as empresas que atuam no mercado imobiliário não se aventuram no segmento conhecido como popular, no qual a demanda existe, mas a viabilidade econômica não.
No caso dos empreendimentos populares, as adversidades também enfrentadas nos mercados de maior renda -ausência de "funding", altas taxas de juros potencializadas pela necessidade de maior prazo de amortização, tributação excessiva sobre os custos, escassez de terrenos etc.- são ainda mais insuperáveis pelo comprador com baixa capacidade de poupança.
Para inverter esse cenário, o único caminho é remover os obstáculos que inibem os empreendedores brasileiros.
Primeiramente, é preciso oferecer créditos em quantidade suficiente e níveis de juros possíveis às camadas menos favorecidas. Para tanto há que estruturar um mecanismo de poupança e financiamento de longo prazo, que, mercê da importância social da ação e de seus desdobramentos positivos, não concorra com as aplicações financeiras tradicionais, extremamente sensíveis a nuances no curto prazo. Há que fazer isso sem o pudor de que essa política sobrecarregue os cofres do Estado. Afinal, maiores (e piores) do que os mecanismos organizados de estímulo à produção com subsídio governamental são os estragos que o refreamento da demanda por lares possa causar e já está causando há tempos. Igualmente necessária é a criação de um ambiente de segurança jurídica que garanta a retomada dos imóveis em caso de inadimplência a fim de garantir a oferta de crédito às famílias de baixa renda.
Também é indispensável eliminar outros entraves que impedem a atuação do setor privado na produção de habitações de interesse social. Quando destrinchamos o custo dos imóveis, outras aberrações são encontradas: um estudo elaborado pelo engenheiro Claudio Bernardes, pró-reitor da Universidade Secovi-SP, identificou que nada menos que 50% do preço final do imóvel é tributo, municipal, estadual e federal. Tal nível é encontrado somente na taxação de produtos de alguma forma prejudiciais à saúde do consumidor. Uma punição incompatível com a prioridade social da habitação.
Por seu lado, as legislações urbanísticas -as atuais e outras que continuam sendo produzidas- impõem exigências impraticáveis para quem pretende produzir moradias populares. Muitas delas remetem à redução do potencial construtivo, o que, na prática, provoca o encarecimento do insumo "terreno" e, consequentemente, da habitação. Afasta a população das regiões centrais da metrópole paulistana (dotadas de infra-estrutura básica e transportes) e promove o crescimento das regiões periféricas, onde os terrenos são mais baratos. Além disso, termina por anular os avanços tecnológicos dos sistemas construtivos da indústria imobiliária, que teima em ampliar sua produtividade, apesar das excepcionais oscilações de preço dos materiais de construção oligopolizados.
A burocracia é outro entrave a ser superado. Poucos sabem que o segmento imobiliário é o campeão da burocracia: nenhum outro setor requer tantos documentos ou procedimentos. O resultado da morosidade em um ambiente de juros altos é a elevação do custo financeiro, o que onera o preço final do imóvel.
Felizmente, o novo governo sinaliza com as esperadas mudanças no que diz respeito à política habitacional. Exemplo disso reside no que afirmou o recém-empossado ministro das Cidades, Olívio Dutra. Com propriedade, ele empregou o vocábulo "holístico" para designar o processo ideal de enfrentamento do problema.
Isso permite vislumbrar uma política habitacional que vai muito além da simples concessão de títulos de propriedade às habitações irregulares, mas que prioriza condições mínimas de moradia com qualidade.
Autoriza, ainda, acreditar que daremos início a um novo e saudável ciclo, com governantes corajosos, tributaristas conscientes, urbanistas inteligentes e empreendedores criativos.


Ricardo Pereira Leite é diretor do Secovi-SP e da Tecnisa Engenharia e Comércio Ltda.


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