São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2004

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Trevisan critica Fundo e vê o país "proibido de crescer"

Juca Varella - 7.mai.04/Folha Imagem
Antoninho Marmo Trevisan (esq.) discursa em sua posse na Academia Brasileira de Contabilidade, na sexta-feira; à dir., José Dirceu


GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

Recém-empossado presidente da Academia Brasileira de Ciências Contábeis, o consultor Antoninho Marmo Trevisan, 54, amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, defende a mudança da forma como é feita a contabilidade pública no país.
Segundo ele, desde que, por determinação do FMI (Fundo Monetário Internacional), o investimento começou a ser contabilizado como despesa, o crescimento do Brasil despencou de 5,7% em média ao ano para 2%. "O Brasil está proibido de crescer", diz.
Para o consultor, o país tem de convencer o FMI de que precisa seguir as regras do que determina a ciência contábil e passar a registrar investimento como ativo, e não como despesa. É assim, segundo ele, em todos os países. "O FMI só aplica isso em países que não têm contabilidade crível", diz.
 

Folha - Por que o sr. quer mudar a contabilidade pública no país?
Antoninho Marmo Trevisan -
Desde que eu ocupei a Sest [Secretaria Especial de Controle das Estatais], em 87, já me incomodava o fato de as contas públicas serem geridas com a visão do economista. Desde aquela fase, constatei que a maneira de registrar as contas públicas tinha deixado de ser feita dentro dos padrões de princípios contábeis. Eu pude sentir o problema de as empresas estatais estarem impedidas de investir. O que eu descobri é que essa já era uma demanda do FMI. Nos anos 80, o então ministro Delfim Netto usou um expediente bastante competente para compensar a falta de crédito do Tesouro. O Tesouro obtinha recursos de empréstimos feitos pelas estatais. A Petrobras foi o carro-chefe, mas a Telebrás também pegou muito dinheiro de fora na época. Nos anos 80, o Brasil não tinha crédito, o Tesouro brasileiro não tinha crédito, mas as estatais tinham. Quando descobriu isso, o FMI impôs uma contabilidade que eu chamo de contabilidade casuística para o Brasil. Desde então, os investimentos públicos passaram a ser contabilizados como despesas. A partir desse momento, o Brasil parou de crescer.

Folha - Como assim?
Trevisan -
Terminado o milagre brasileiro, a partir do início dos anos 80, deixamos de investir em infra-estrutura, e o que se constata é que o crescimento do PIB baixou dos 5,7% que manteve de 1947 até o final dos anos 70 para desprezíveis 2%. No ano passado, Pérsio Arida, ao receber o prêmio de Economista do Ano, fez um desafio aos presentes: apresentar uma proposta de crescimento.

Folha - O sr. tem uma proposta?
Trevisan -
O problema do Brasil é contábil. O Brasil está proibido de crescer. O país está condenado, matematicamente e contabilmente, ao não-crescimento. Imagine se uma empresa no Brasil ou em qualquer lugar do mundo tivesse de lançar cada investimento que fizesse na compra de equipamentos, máquinas ou imóveis como despesa. O que aconteceria com o balanço? Ela não ia ter ativos. O patrimônio dela não existiria e ela só apresentaria prejuízos. O problema do Brasil é que as contas públicas estão sendo medidas de forma errada [...] Despesa é consumo de patrimônio, investimento agrega o patrimônio.

Folha - O conceito de superávit primário do Brasil está errado?
Trevisan -
É um engodo contábil. O superávit brasileiro, comparado com o de outros países, é uma excrescência. É uma comparação que não existe.

Folha - De quanto calcula que seria o superávit segundo a contabilidade que o sr. considera correta?
Trevisan -
Pelas minhas contas, o superávit seria, pelo menos, uns três a quatro pontos maior.

Folha - Como outros países contabilizam investimentos públicos?
Trevisan -
Os outros países contabilizam investimentos como ativo, e não como passivo. E aí vem um segundo problema. Foi gerada no país uma cultura da incapacidade administrativa. Vou dar um exemplo: nós passamos um bom tempo dizendo que a Telebrás era incompetente. Eu era membro do conselho da Telebrás em 86, e aquilo me angustiava. O grande problema era que a Telebrás estava impedida de investir para atender os 20 milhões de brasileiros que na época queriam telefone. Veja o atraso a que o Brasil foi submetido em decorrência de um tema que nunca discutimos. O pior é que, quando a discussão veio, ela também veio torta. O que os economistas dizem? Eles dizem que, se esse conceito for revisto, vai se iniciar uma farra fiscal. Isso desqualifica a discussão. Mas eu perdôo os economistas. Eles não entendem de contabilidade. O que quero dizer é o seguinte. Imagine se você colocasse para gerir a Natura o tesoureiro da empresa. O que acha que a Natura ia fazer? Não ia investir. É o que acontece com o Brasil.

Folha - O Brasil está na mão do tesoureiro?
Trevisan -
Do tesoureiro. Você conhece algum tesoureiro no mundo que queira fazer qualquer investimento? Quando surgiu essa imagem de que nós éramos um bando de incapazes e irresponsáveis, essa foi a maneira que o FMI encontrou para controlar o país. Só que é uma maneira que contraria os princípios contábeis. Mas o FMI acha que somos uma república das bananas, que gasta dinheiro a rodo. O FMI acha que somos todos incompetentes, incapazes para gerir os recursos e, por isso, não podemos crescer.

Folha -O sr. levou essa questão ao presidente Lula?
Trevisan -
Eu conversei com o presidente no dia 28 de outubro sobre esse assunto, e ele ficou absolutamente preocupado.

Folha - O que o sr. acha dessa idéia do FMI de fazer um projeto piloto para o Brasil?
Trevisan -
O que nós estamos discutindo não é o projeto piloto. Nós estamos discutindo o princípio das contas públicas apresentadas de maneira correta, porque, da forma como elas estão, estão incorretas. Esse projeto piloto é algo mais ou menos como se o FMI dissesse o seguinte: olhe, deixe-me ver se você já sabe andar direito. O problema é eminentemente contábil. Contábil. Por que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teve o problema do apagão? Porque ele estava impedido de investir no setor elétrico.

Folha - Qual a garantia que o dinheiro das estatais irá mesmo ser aplicado em investimentos?
Trevisan -
Há um outro problema. Nós somos um país pouco auditado. Nós fazemos auditoria em menos de 10% dos investimentos que são feitos. Nos países desenvolvidos, recurso público, ainda que seja um dólar, é auditado. O Brasil não tem isso.


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