São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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ARTIGO

Globalização para poucos amplia pobreza e revolta

JEFFREY SACHS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A globalização está sob mais pressão do que nunca. Suas tensões se manifestam por toda parte. A maior parte da África subsaariana, da América do Sul, do Oriente Médio e da Ásia central está atolada em estagnação ou declínio econômico. América do Norte, Europa ocidental e Japão apresentam crescimento lento e correm o risco de sofrer nova recessão. E agora há o risco de guerra no Iraque.
Para os defensores dos mercados abertos e do livre comércio, isso coloca grandes desafios. Por que a globalização corre risco? Por que seus benefícios parecem concentrar-se em tão poucos lugares? É possível alcançar uma globalização mais equilibrada?
Não existem respostas fáceis. Os mercados abertos são necessários para o crescimento econômico, mas não bastam para garantir o crescimento. Algumas regiões têm se dado extremamente bem com a globalização -caso da Ásia oriental e da China, especialmente nos últimos anos. Outras têm se saído muito mal, especialmente a África subsaariana.
O governo americano faz de conta que a maioria dos problemas dos países pobres é de responsabilidade deles próprios. Seus líderes dizem, por exemplo, que o crescimento lento se deve à má governança na África. Mas a vida é mais complicada do que acredita a administração Bush.
Consideremos os países africanos mais bem governados: Gana, Tanzânia, Maláui, Gâmbia. Todos apresentaram queda em seus níveis de vida nas últimas duas décadas. Ao mesmo tempo, muitos países asiáticos situados em patamares inferiores em termos de governança -Paquistão, Bangladesh, Mianmar e Sri Lanka- tiveram crescimento melhor.
A verdade é que o desempenho econômico é determinado não só por padrões de governança, mas por geopolítica, geografia e estrutura econômica. Países com populações grandes (portanto, com mercado interno grande) tendem a crescer mais depressa do que países com população pequena.
Países costeiros tendem a sair-se melhor do que os que não têm saída para o mar. Os que têm alta incidência de malária crescem mais lentamente do que aqueles em que esse índice é menor. Emergentes vizinhos de mercados ricos -o México, por exemplo- tendem a apresentar desempenho melhor do que países distantes dos mercados centrais.
Essas diferenças fazem a diferença. Se os países ricos não derem importância a essas questões estruturais, a distância entre os perdedores e ganhadores do mundo continuará a crescer. Se os ricos culparem os países que não têm sorte afirmando que eles não têm condições culturais ou políticas de beneficiar-se da globalização, então vamos criar não apenas bolsões ainda maiores de pobreza, mas também um clima de revolta crescente. Este, por sua vez, resultará em níveis crescentes de violência, reações contrárias e -sim, isso mesmo- terrorismo.
É hora de abordar a globalização com mais seriedade do que vêm fazendo os países ricos, especialmente os EUA. Para começar, o mais urgente é satisfazer as necessidades básicas das populações mais miseráveis do mundo. Em alguns casos, o sofrimento só pode ser aliviado por meio de governança melhor. Em outros, porém, um exame honesto revelará que as causas básicas dos problemas são doenças, instabilidade climática, solos pobres, distância dos mercados e assim por diante.
Uma avaliação honesta mostraria também que os países mais pobres não podem levantar fundos suficientes para resolver esses problemas por conta própria. Em lugar de fazer mais sermões, para chegar a soluções reais os países ricos terão de oferecer assistência financeira suficiente para superar as barreiras mais profundas.
Um exemplo basta para ilustrar a situação. O controle de doenças requer um sistema de saúde que forneça à população os medicamentos essenciais para salvar vidas e serviços preventivos básicos -mosquiteiros para prevenir a malária, vitaminas para combater a desnutrição. Isso custa no mínimo US$ 40 por pessoa por ano.
É um valor desprezível para países que rotineiramente gastam mais de US$ 2.000 por habitante por ano em saúde, mas está fora do alcance de países pobres como o Maláui, cuja renda anual per capita é de US$ 200. Um sistema de saúde eficiente custaria mais do que toda a receita do governo! Mesmo que o Maláui seja bem governado, grande parte da população morrerá de doenças se o país não receber assistência adequada.
Uma globalização bem-sucedida exige que pensemos mais como médicos e menos como pregadores. Em vez de criticar os pobres por seus supostos pecados, devemos fazer diagnósticos cuidadosos (como faria um bom médico) para cada país e região e compreender os fatores centrais que retardam o crescimento e o desenvolvimento econômicos.
Em algumas regiões, como os Andes e a Ásia central, o problema principal é o isolamento geográfico. Nessas áreas, a tarefa consiste em construir estradas, ligações aéreas e via internet para ajudar esses países distantes a criar laços produtivos com o mundo. Os países ricos precisam ajudar a financiar esses projetos.
Na África subsaariana, os desafios básicos são o controle das doenças, a fertilidade do solo e a educação. Maior assistência externa será necessária. Em outras regiões, os desafios talvez sejam a falta d'água, a discriminação contra as mulheres ou outros grupos, ou um entre uma série de problemas específicos.
Já está mais do que na hora de encararmos as complexidades da globalização seriamente. A ideologia de estilo ""tamanho único, bom para todos" do Consenso de Washington já acabou. Neste momento, quando estamos à beira da guerra, é urgente dar início ao trabalho duro de fazer a globalização funcionar para todos. Isso pode ser feito, desde que retiremos os antolhos ideológicos dos ricos e mobilizemos uma parceria entre ricos e pobres. Nosso futuro comum depende disso.


Jeffrey D. Sachs é professor de economia e diretor do Instituto da Terra da Universidade Columbia.

Tradução de Clara Allain


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