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São Paulo, quarta-feira, 11 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Concordata previdenciária

PAULO RABELLO DE CASTRO

O texto apresentado como "reforma previdenciária" passou na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, por 44 votos a favor e 13 contra. A Comissão admitiu a proposta, sem vícios de inconstitucionalidade. Segue, agora, para a Comissão Especial, que discutirá questões de mérito.
O exame de admissibilidade resultou numa vitória por larga maioria. Uma vitória fácil, apenas aparentemente. Muitos deputados não quiseram polemizar, já que o texto sofrerá destaques quanto ao seu mérito. Essa posição "pragmática" transige com os vícios que o projeto oficial de fato carrega.
O governo ofereceu ao país um projeto de concordata previdenciária no setor público. O projeto trata dos regimes próprios dos servidores públicos na União, Estados e municípios. O regime geral do setor privado, administrado pelo INSS, escapou, apenas com uma alteração: a elevação do teto de contribuição para R$ 2.400 -que, tampouco, deveria ser matéria tratada como dispositivo constitucional.
O que chama a atenção, contudo, é o tratamento discricionário das diversas situações dos servidores públicos, se já aposentados (portanto com seus "direitos consumados", no dizer do renomado jurista Luiz Roberto Barroso), ou se aposentáveis (ou seja, com "direitos adquiridos", pelo cumprimento de todos os requisitos), ou, se ainda na ativa, não-aposentáveis (daí, apenas acumulando "expectativas de direito", que não são diretamente amparadas pela norma constitucional).
Aos já aposentados, o texto de reforma do governo quer impor a contribuição de custeio na sua inatividade, que será igual à dos servidores ativos, e, nos Estados e municípios, nos seus regimes autônomos, não poderá ser inferior à alíquota praticada pela União na cobrança dos seus estatutários. É patente a insegurança jurídica e a provável inconstitucionalidade de estabelecer uma alíquota federal -que, uma vez alterada para cima, por exemplo, mexerá com toda a estrutura atuarial montada nos Estados e municípios, cujas características são tão distintas entre si! No entanto essa "pérola" passou batida pela CCJ na Câmara.
Mas, para os aposentados, a questão não é de alíquota, tanto quanto da natureza da contribuição, que retroagirá sobre o direito consumado. É o espelho da esdrúxula idéia que circulou, na semana passada, visando a taxar com alíquota extra de Imposto de Renda os ex-universitários de vida profissional "bem-sucedida" -aí entendido quem estudou em universidade pública e, "pour cause", ganhar mais de R$ 30.000 por ano.
Essas propostas estão todas amarradas num falso questionamento moral, que indaga "se é justo" que algumas dezenas de milhares de servidores privilegiados custem aos cofres públicos mais do que todos os programas de assistência do governo... A tendência de qualquer platéia, hipnotizada pela falácia do argumento e culpabilizada pela percepção chocante das evidentes desigualdades de toda natureza num país tão desnivelado quanto o nosso, é, simplesmente, balbuciar: "Não, não é justo... reforme-se a lei, punam-se os culpados!".
Nessa mesma toada, amanhã nos perguntaremos se é justo se alguns tenham mais terra, enquanto outros menos ou nenhuma, ou se é justo que alguns tenham tanta escolaridade, enquanto outros menos ou nenhuma, e se sobre aqueles que tiverem acumulado mais alguma taxação extra terá de ser aplicada, não pela progressividade de um Imposto de Renda ou por um imposto geral de consumo, mas pelo simples fato de terem acumulado um direito ou uma certa riqueza!
Pior é a situação dos servidores da ativa (veja quadro). Para esses, como não têm direitos adquiridos, mas mera esperança de direito, a proposta previdenciária reserva uma surpresa "que não é justa". Se hoje se aposentariam com a remuneração do último cargo efetivo, após a reforma calcular-se-ão seus salários ao longo de toda a vida laboral. Quanto mais o servidor houver investido em sua própria ascensão profissional, maior será sua punição, pois o provento na inatividade refletirá tanto seus menores quanto seus maiores salários. Isso é justo?
Insisto na pergunta sobre a dita "justiça", para concluir que este debate não trata de justiça. Óbvio que a distribuição da sorte na vida e das chances neste país nunca foi justa. Não será essa lei que fará justiça. O que importa, nesse caso, é a segurança jurídica e o aperfeiçoamento do sistema previdenciário, sob um critério de efetiva capacidade contributiva. E, sob esses critérios, o texto da concordata previdenciária é falho, pobre e atuarialmente impróprio. É politicamente inconstitucional ferir a esperança acumulada dos servidores ativos, aos quais uma regra de proporcionalidade sobre os anos já trabalhados deveria ser garantida.
Óbvio também que não cabe uma alíquota única de cobrança a inativos, que pagarão 11% sobre R$ 1.500 ou os mesmos 11% sobre R$ 17.000 ou R$ 20.000. Num caso, corta-se a verba do diurético, no outro, corta-se parte da prestação do Fusca zero do netinho (isso é justo?)...
Finalmente, onde já se viu falar de reforma previdenciária sem previsão constitucional de uma lei de responsabilidade previdenciária que, de fato, defina os critérios atuariais pelos quais o legislador, hoje à galega, eleva ou abaixa tetos, corta pensões de viúvas, estabelece e altera alíquotas de custeio? Isso é sério?
O Brasil continua sendo um país em que até o passado é precário!


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br


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