|
Texto Anterior | Índice
Negociadores vêem morte da Rodada Doha
Sem perspectiva de avanço, o Conselho Geral da OMC decide não convocar a reunião ministerial até o final deste ano
EUA criticam os países em desenvolvimento; estes querem que a redução da ajuda agrícola dos ricos seja o centro das negociações
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MONTREUX
A Rodada Doha de liberalização comercial está morta, mas
ninguém ousará emitir o seu
atestado de óbito. A avaliação
foi obtida ontem pela Folha de
um dos principais atores das
negociações, com o compromisso de não citação do nome.
Doha foi lançada em 2001, na
capital do Qatar, como a mais
ambiciosa etapa de abertura do
comércio no planeta, mas
avançou muito pouco desde
então. Anteontem, entrou pelo
menos em estado de coma, depois que um numeroso bloco
de países em desenvolvimento,
Brasil à frente, recusou-se a
aceitar os cortes nas suas tarifas de importação de bens industriais nos moldes propostos
pelo canadense Don Stephenson, presidente do grupo negociador dessa área.
Os Estados Unidos revidaram imediatamente com fortes
disparos contra os países em
desenvolvimento, retomando o
cenário de Potsdam, na Alemanha, quando fracassou uma
reunião do G4 (Brasil, Índia,
EUA e União Européia) destinada exatamente a dar um impulso decisivo à rodada.
Os países em desenvolvimento exigem que a redução
do protecionismo agrícola dos
países ricos seja o centro da negociação.
Stephenson, ao participar
ontem de um seminário sobre
exportações em Montreux,
contou uma história que retrata bem a negociação: disse que,
há uns 150 anos, o Estado norte-americano de Kansas tinha
uma lei que dizia que, caso dois
trens viessem em sentido contrário, os dois deveriam brecar
imediatamente e um só poderia se mover quando o outro se
movesse também.
Como o trem dos países ricos
e o trem dos países em desenvolvimento não se movem, não
há a colisão frontal mas tampouco há acordo, o que leva
Doha ao coma.
"Há um disseminado sentimento em Genebra de que não
há desejo dos dois lados de tomar as duras decisões necessárias para chegar a um acordo",
ouviu a Folha de um segundo
negociador, dos mais relevantes.
Genebra é o QG da Organização Mundial do Comércio, em
cuja sede, às margens do lago
Léman, seguem as negociações.
Mas seguem agora sem perspectiva de qualquer avanço, a
ponto de o Conselho Geral
-principal instância técnica da
OMC- ter decidido violar as
regras e não convocar uma reunião ministerial até o fim do
ano, pelo menos.
Violação de regra
O acordo que criou a OMC
manda realizar reuniões ministeriais -suprema instância política e decisória- a cada dois
anos. A última foi em dezembro
de 2005 em Hong Kong. Logo,
não haver novo encontro em
2007 viola a regra, o que ocorre
pela primeira vez.
Antes, houve antecipação de
reuniões ministeriais, mas
nunca o adiamento por tempo
indefinido.
No comando da OMC, avalia-se que não há demanda, não há
agenda e nem mesmo um local
oferecido para a reunião ministerial, razão pela qual não há o
menor sentido em convocá-la.
No máximo, serviria para emitir o atestado de óbito de Doha,
o que os participantes não farão
nem sob tortura.
Tirar Doha do coma exigiria
envolvimento político, ou seja,
uma reunião de ministros, que
não precisam ser de todos os
151 países-membros da instituição, mas teria de ser um grupo representativo, avalia um
dos principais negociadores,
sempre na condição de não ter
o nome mencionado. Mas ele
completa: "Não há planos para
nenhum encontro ministerial".
Posto de outra forma: até o
fim do ano, não há hipótese de
avanço. Logo em seguida, entra-se no período mais quente
da eleição norte-americana (a
partir de março mais ou menos), o que torna impraticável
qualquer concessão de Washington que possa fazer mover
o "trem" dos Estados Unidos e
permitir, assim, que se mexa
também o "trem" dos países em
desenvolvimento.
A delegação brasileira nega
rotundamente, mas seus principais parceiros têm certeza absoluta de que a resistência brasileira à redução de suas tarifas
industriais não é uma questão
interna, mas uma maneira de
atender Argentina e África do
Sul e, assim, preservar a unidade do G20, o grupo dos países
em desenvolvimento liderado
por Brasil e Índia que luta pela
abertura agrícola do mundo rico.
Problema comercial
Proteger Argentina e, por extensão, o Mercosul, é necessário porque o país vizinho está
hoje na situação em que os Estados Unidos entrarão no ano
que vem. Na iminência da eleição presidencial, qualquer concessão na área industrial poderia afetar a candidata situacionista, Cristina Kirchner.
O problema é que no Mercosul há fissuras. O Uruguai não
concorda com a resistência à
abertura industrial, o que deve
forçar a realização, no fim de
semana, de uma reunião em
Montevidéu para tentar afinar
a sintonia no bloco do Sul.
Qual será a conseqüência da
morte de Doha, se devidamente
certificada? "Será mais que um
problema comercial", responde Pascal Lamy, o diretor-geral
da OMC. Por quê? Porque
ameaça a credibilidade do sistema multilateral de comércio.
Para o Brasil, será inequivocamente um retrocesso porque
é no âmbito multilateral que o
país aposta suas principais fichas. Sabe que só obterá verdadeiros ganhos na área agrícola
no âmbito da OMC, não em negociações bilaterais com europeus ou norte-americanos.
O jornalista CLÓVIS ROSSI viajou a Montreux a
convite do Centro de Comércio Internacional,
braço técnico conjunto da OMC e da Unctad
Texto Anterior: Outro lado: Usina alega que modelo é diferente Índice
|