São Paulo, quinta-feira, 11 de outubro de 2007

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Negociadores vêem morte da Rodada Doha

Sem perspectiva de avanço, o Conselho Geral da OMC decide não convocar a reunião ministerial até o final deste ano

EUA criticam os países em desenvolvimento; estes querem que a redução da ajuda agrícola dos ricos seja o centro das negociações

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MONTREUX

A Rodada Doha de liberalização comercial está morta, mas ninguém ousará emitir o seu atestado de óbito. A avaliação foi obtida ontem pela Folha de um dos principais atores das negociações, com o compromisso de não citação do nome.
Doha foi lançada em 2001, na capital do Qatar, como a mais ambiciosa etapa de abertura do comércio no planeta, mas avançou muito pouco desde então. Anteontem, entrou pelo menos em estado de coma, depois que um numeroso bloco de países em desenvolvimento, Brasil à frente, recusou-se a aceitar os cortes nas suas tarifas de importação de bens industriais nos moldes propostos pelo canadense Don Stephenson, presidente do grupo negociador dessa área.
Os Estados Unidos revidaram imediatamente com fortes disparos contra os países em desenvolvimento, retomando o cenário de Potsdam, na Alemanha, quando fracassou uma reunião do G4 (Brasil, Índia, EUA e União Européia) destinada exatamente a dar um impulso decisivo à rodada. Os países em desenvolvimento exigem que a redução do protecionismo agrícola dos países ricos seja o centro da negociação.
Stephenson, ao participar ontem de um seminário sobre exportações em Montreux, contou uma história que retrata bem a negociação: disse que, há uns 150 anos, o Estado norte-americano de Kansas tinha uma lei que dizia que, caso dois trens viessem em sentido contrário, os dois deveriam brecar imediatamente e um só poderia se mover quando o outro se movesse também.
Como o trem dos países ricos e o trem dos países em desenvolvimento não se movem, não há a colisão frontal mas tampouco há acordo, o que leva Doha ao coma.
"Há um disseminado sentimento em Genebra de que não há desejo dos dois lados de tomar as duras decisões necessárias para chegar a um acordo", ouviu a Folha de um segundo negociador, dos mais relevantes.
Genebra é o QG da Organização Mundial do Comércio, em cuja sede, às margens do lago Léman, seguem as negociações.
Mas seguem agora sem perspectiva de qualquer avanço, a ponto de o Conselho Geral -principal instância técnica da OMC- ter decidido violar as regras e não convocar uma reunião ministerial até o fim do ano, pelo menos.

Violação de regra
O acordo que criou a OMC manda realizar reuniões ministeriais -suprema instância política e decisória- a cada dois anos. A última foi em dezembro de 2005 em Hong Kong. Logo, não haver novo encontro em 2007 viola a regra, o que ocorre pela primeira vez.
Antes, houve antecipação de reuniões ministeriais, mas nunca o adiamento por tempo indefinido.
No comando da OMC, avalia-se que não há demanda, não há agenda e nem mesmo um local oferecido para a reunião ministerial, razão pela qual não há o menor sentido em convocá-la.
No máximo, serviria para emitir o atestado de óbito de Doha, o que os participantes não farão nem sob tortura.
Tirar Doha do coma exigiria envolvimento político, ou seja, uma reunião de ministros, que não precisam ser de todos os 151 países-membros da instituição, mas teria de ser um grupo representativo, avalia um dos principais negociadores, sempre na condição de não ter o nome mencionado. Mas ele completa: "Não há planos para nenhum encontro ministerial".
Posto de outra forma: até o fim do ano, não há hipótese de avanço. Logo em seguida, entra-se no período mais quente da eleição norte-americana (a partir de março mais ou menos), o que torna impraticável qualquer concessão de Washington que possa fazer mover o "trem" dos Estados Unidos e permitir, assim, que se mexa também o "trem" dos países em desenvolvimento.
A delegação brasileira nega rotundamente, mas seus principais parceiros têm certeza absoluta de que a resistência brasileira à redução de suas tarifas industriais não é uma questão interna, mas uma maneira de atender Argentina e África do Sul e, assim, preservar a unidade do G20, o grupo dos países em desenvolvimento liderado por Brasil e Índia que luta pela abertura agrícola do mundo rico.

Problema comercial
Proteger Argentina e, por extensão, o Mercosul, é necessário porque o país vizinho está hoje na situação em que os Estados Unidos entrarão no ano que vem. Na iminência da eleição presidencial, qualquer concessão na área industrial poderia afetar a candidata situacionista, Cristina Kirchner.
O problema é que no Mercosul há fissuras. O Uruguai não concorda com a resistência à abertura industrial, o que deve forçar a realização, no fim de semana, de uma reunião em Montevidéu para tentar afinar a sintonia no bloco do Sul.
Qual será a conseqüência da morte de Doha, se devidamente certificada? "Será mais que um problema comercial", responde Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC. Por quê? Porque ameaça a credibilidade do sistema multilateral de comércio.
Para o Brasil, será inequivocamente um retrocesso porque é no âmbito multilateral que o país aposta suas principais fichas. Sabe que só obterá verdadeiros ganhos na área agrícola no âmbito da OMC, não em negociações bilaterais com europeus ou norte-americanos.


O jornalista CLÓVIS ROSSI viajou a Montreux a convite do Centro de Comércio Internacional, braço técnico conjunto da OMC e da Unctad


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