São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os neocríticos

ALOIZIO MERCADANTE

A vitória do candidato Lula provocou diversas reações. Uma das mais instigantes foi a de articulistas e jornalistas que atuaram como porta-vozes do governo Fernando Henrique Cardoso e a de tucanos de diversas plumagens que, de repente, passaram a ter um senso crítico extremamente aguçado. Senso crítico que estranhamente nunca se manifestou nos últimos oito anos, nos quais a economia brasileira sofreu processo de desorganização selvagem, o desemprego e a violência foram levados a níveis críticos, o Estado foi institucional e financeiramente desmantelado e a autonomia do país reduzida a níveis incompatíveis com a condição de nação soberana. Houvera esse senso crítico aflorado com a intensidade que hoje se manifesta, provavelmente a situação do país seria muito melhor.
Seria muito cômodo desqualificar esses críticos -chamando-os de neobobos, por exemplo- como o governo anterior fez quando advertíamos sobre os efeitos destrutivos e os riscos, agora reconhecidos por todos, das políticas de abertura comercial e financeira desregulada e de sobrevalorização da taxa de câmbio que marcaram o primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique. Muitas das severas restrições que o país hoje enfrenta nas áreas fiscal e externa são ainda consequência daquelas políticas.
No processo eleitoral, muitas das críticas ao candidato Lula e a seu programa careciam de argumentos sólidos. Seu objetivo era mais o de difundir o medo. Mas a esperança venceu o medo. Agora, pouco mais de uma semana após a posse do novo governo, as críticas sobre sua orientação e desempenho ressurgem. São, na melhor das hipóteses, prematuras. O que não significa que não devam ser consideradas e até esclarecidas. Essa é a intenção deste artigo.
É possível resumir essas críticas em três teses. A primeira é a de que Lula reproduziria no Brasil a experiência do ex-presidente argentino Fernando de la Rúa. Em sua vertente de direita -explicitada pelo candidato derrotado, José Serra-, essa tese teria como eixo a suposta incapacidade do governo Lula para governar, entre outras coisas pela sua falta de competência técnica, apoio político e credibilidade externa. A queda acentuada do dólar, o clima de otimismo que tomou conta do país, a qualidade e a amplitude da equipe de governo e a habilidade demonstrada pelo presidente Lula na articulação da sua base de sustentação política são evidências objetivas da falta de fundamentação desse tipo de crítica.
Para alguns segmentos da esquerda, a argumentação tem outro viés: para não reproduzir o fracasso de De la Rúa, seria necessário fazer, antes, tudo o que foi feito na Argentina depois da sua queda: moratória da dívida externa, renegociação compulsória da dívida interna etc. Ora, isso não é opção, é falta de opção e não tem nenhuma relação com a situação da economia brasileira.
A segunda tese é a de que o presidente Lula seria um outro Chávez, que levaria a sociedade brasileira a um isolamento internacional e a uma desagregação interna em razão da radicalidade de suas posições, da dificuldade de interlocução democrática e das consequências econômicas e políticas daí advindas. Também aqui as evidências objetivas -a idéia do pacto social que permeia a estratégia política do governo Lula, a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento, incorporando os segmentos representativos da sociedade, a mediação do conflito na Venezuela, a reafirmação da disposição negociadora do país sustentada na defesa dos interesses estratégicos nacionais- vão na contramão desses argumentos.
Por último, dizem os neocríticos que nada vai mudar, que a política do governo Lula terá que ser a mesma do governo FHC, porque é muito fácil criticar, mas outra coisa é governar com "responsabilidade". Mais uma vez a tese confronta a realidade. Não é que não vai mudar. Já mudou. A posse de Lula, emoldurada pela maior mobilização popular já vista em um evento dessa natureza, já simboliza essa mudança. Já é mudança a incorporação da sociedade à discussão das estratégias e políticas de desenvolvimento do país; já é mudança o encontro do presidente com as centrais sindicais; já é mudança o compromisso com os programas sociais; já é mudança colocar a fome como prioridade nacional.
Evidentemente a margem de manobra do novo governo é muito pequena, em decorrência da pesada herança deixada pelo governo Fernando Henrique, principalmente pela extrema vulnerabilidade externa e pela fragilidade das finanças públicas, que determinam adicionalmente fortes limitações à retomada do crescimento econômico. Agregue-se a isso o aumento das tensões inflacionárias derivadas da crise cambial -em outubro e novembro passados a inflação anualizada já alcançava 34% medida pelo IPCA e mais de 80% medida pelo IGP-M- e o quadro internacional desfavorável gerado pela contração da economia dos EUA, a redução dos fluxos de investimento e financiamento para os países em desenvolvimento e as perspectivas de agravamento da situação mundial associadas ao provável ataque dos EUA ao Iraque.
Essas circunstâncias, como dissemos durante a campanha, impõem severas restrições ao processo de mudança inaugurado com a eleição do presidente Lula. No entanto, com criatividade, responsabilidade e determinação, é possível avançar, inovando no padrão de relacionamento com o FMI, redirecionando o sistema financeiro da ciranda da dívida pública para o crédito à produção e à exportação e fortalecendo as cadeias produtivas que sustentam o consumo de massas.
Superar a vulnerabilidade externa, manter a inflação sob controle e retomar o crescimento econômico, tendo como eixo articulador desse conjunto a inclusão social, formam o grande desafio da nova política econômica a ser implantada pelo governo Lula. Não é preciso ir muito longe no tempo para perceber a magnitude e o significado dessa política em termos de ruptura com um padrão histórico que sempre priorizou a elite. Talvez seja isso o que tanto incomoda os neocríticos: mudar com responsabilidade.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.


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