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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Heróis do mar e Chile lindo no Carnaval dos 500 anos
MARIA DA CONCEIÇÃO
TAVARES
"Heróis do mar, nobre povo,
nação valente, imortal!", cantava eu na escola primária, de
braço levantado, como era obrigatório em pleno salazarismo
fascista! Mais tarde, ainda menina, lendo a Mensagem de Fernando Pessoa, recitava com novo entendimento "as Armas e os
Brasões assinalados" e esperava
a chegada do "5º Império". O
primeiro havia se mudado para
a colônia, inaugurando as "vergonhosas transações" que levariam o novo Império brasileiro a
ser um "imenso Portugal" no
séc. 19. (Os tempos sempre trocados mesmo com a ajuda de Chico Buarque!)
"O la tumba será de los libres,
o el asilo contra la opression"
cantava, já na maturidade, com
os olhos marejados junto com os
brasileiros exilados em Santiago
30 anos atrás. De punho em alto,
na Alameda, centenas de milhares de pessoas escandíamos com
júbilo "El pueblo unido jamais
sera vencido!", para celebrar a
vitória de Allende. Voltei a cantar o mesmo em 1989, junto com
o povo chileno depois do plebiscito, embora os militares continuassem a ocupar a parte mais
substancial do poder. As massas
pobres chilenas e as juventudes
socialistas ainda repetiram o estribilho no enterro oficial de
Allende. Que cantarão os chilenos hoje, depois da volta "triunfante" de Pinochet e da posse de
Ricardo Lagos?
Enquanto essas memórias me
assaltavam, o Carnaval dos 500
anos explodia no Rio sem ordem
cronológica e sem ufanismo. As
escolas recordaram a tortura e a
ditadura, representaram as dores da escravidão, não leram a
carta de Pero Vaz de Caminha,
mas a de Getúlio Vargas. Não se
enalteceu o "tropicalismo triunfante" de JK, em que os intelectuais e o povo brasileiro achávamos pela última vez que estávamos construindo não um Estado
Novo, mas uma nação democrática e multirracial a caminho do
desenvolvimento. Finalmente,
depois de 21 anos de ditadura e
de 15 anos de transição democrática apodrecida, as "Visões
do Paraíso", os mitos e arquétipos da cultura brasileira foram
atravessados por 500 anos de
dores populares.
O Rio de Janeiro, a cidade que
no dizer de meu amigo Carlos
Lessa é o espelho partido da nação brasileira, foi a passarela
completa e retumbante do novo
tropicalismo. Os cacos multicoloridos -prata e preto, azul anil
e verde das matas e da bandeira- lá estavam deslumbrantes
na avenida. Em enredos imaginados pelos "intelectuais orgânicos" do nosso maior empreendimento de "capitalismo popular" e fantasias trabalhadas por
milhares de cariocas pobres e
mal pagos. Na passarela lá estavam os nossos índios imaginários em acrobacias brilhantes e
descendo de uma nave espacial
o índio que virá! Na Sapucaí
ocorreu o nascimento do rei Obá
2º representando a transcendência dos descendentes dos africanos escravos, acompanhado do
refrão realista batucando nos
ouvidos da arquibancada: "Do
lado de lá, luxo e riqueza, do lado de cá, lixo e pobreza". Os do
lado de fora, a maioria dos
membros das "comunidades",
moviam-se que nem condenados para ganhar uns trocados
sem participar da festa. O luxo
dos emergentes e das "estrelas
globais" no meio das escolas
atravessou o samba e destroçou
o enredo. Lá estavam, junto com
o luxo, os piolhos da corte de
dom João 6º na sua vinda para o
Brasil e finalmente a bandeira
nacional pintada e depois apagada no corpo nu da mulher
loura.
O nosso presidente-ator terminou o seu repouso carnavalesco
fantasiado de fuzileiro naval e
foi dar a partida às naus de Pedro Álvares Cabral, um dia antes da hora. Na Câmara de Lisboa, a pretexto da globalização,
defendeu a "vocação comum ao
universalismo dos "países irmãos". Mais tarde voou até o
Chile para levar a seu colega a
solidariedade de "estadista do
Mercosul". Do lado de cá da cordilheira, os que sobraram do
exílio e não estão no poder ficaram cantando no Bloco de Segunda e nos restos do "Simpatia
é quase amor".
Recolho-me na Quarta-Feira
de Cinzas para uma "plegaria
por los muertos" e uma prece
muda pelos vivos que continuam a luta. Nesta semana caótica não tenho sossego suficiente
nem perspectiva clara: a Revolução dos Cravos já terminou; a
Constituição Cidadã já foi desproclamada; a transição democrática chilena continua se arrastando... Os hinos, como todos
os símbolos, estão fora de lugar.
Não há asilo contra a opressão
nesta terra em transe global. A
nossa pátria mãe gentil é rejeitada pelos "livres", os da liberdade
do comércio e do capital. Para
quem existe então? Para os presos e carcereiros? Para os torturados e torturadores, para os
exilados? Os hinos voltam sempre trocados: herói do povo, nação mortal, levantai hoje de novo a luta dos que precisam do
pão nosso de cada dia. A paz, se
vier, fica para depois da Quaresma.
Maria da Conceição Tavares, 69, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
http://www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br
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