São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2008

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PAULO RABELLO DE CASTRO

Confiança em estado de coma

A figura impoluta de George Washington, estampada na cédula de US$ 1, corre o risco de sair desmoralizada

OS PRESIDENTES dos bancos centrais, reunidos na Suíça, fitam-se perplexos, na expectativa de que alguém tome a iniciativa de falar primeiro. Esgotaram-se as teorias. As falsas explicações não duram mais que alguns pregões de alta. Ainda serão tentadas manobras emergenciais de ressuscitação; os juros do Fed cairão mais; Bernanke dirá que a quebra de algum banco era esperada; Trichet, do BCE (Banco Central Europeu), lembrará que "os emergentes devem ajudar a salvar os ricos" (esta, certamente, a declaração mais graciosa de todas)...
Faltará, entretanto, quem diga que o estado comatoso da confiança não é uma mera crise de pânico. Trata-se da constatação amarga do fim de um ciclo de prosperidade saudável, nos EUA e no mundo, que se transformou, entretanto, em pesadelo. O erro de manobra começou lá atrás, quando Alan Greenspan não permitiu que o ajuste recessivo da economia americana, prenunciado ao final da admirável administração Clinton, em 2000, seguisse seu curso natural de acomodação. Greenspan preferiu utilizar o truque da injeção de liquidez que havia empregado, desde 1987, em diversas outras ocasiões, a fim de controlar a queda da demanda.
O comércio nos EUA passou, então, a girar, literalmente, na base do "fiado". Anúncios enormes apregoavam móveis, utensílios de casa, automóveis, tudo na base do "sinal zero -juro zero -prestação zero". A primeira parcela do financiamento venceria em 12 ou 18 meses. O milagre da "ressurreição" realmente aconteceu, com a inflação ainda bem controlada por preços de commodities muito baixos (lembra-se do barril do petróleo a US$ 18 e o bushel da soja abaixo de US$ 5?). O consumo nos EUA e na Europa alavancou-se na produção asiática para atender a esses novos consumidores.
O detalhe prático, fora do lugar, foi a formação do megadéficit fiscal de US$ 300 bilhões nos EUA e um assombroso déficit exterior, de US$ 700 bilhões. Em apenas sete anos, a administração Bush acumulou um déficit gigantesco de US$ 7 trilhões.
Houve quem desse também uma mãozinha para "explicar" o buraco financeiro dos EUA, afirmando ser a China a grande poupadora dos americanos. Tudo parecia se encaixar: uns poupando, enquanto outros, só gastando.
E gastando em quê? Em casas novas, em prédios fabulosos, imensos centros comerciais, financiados com juro variável, novidade lançada na época para facilitar uma segunda hipoteca do imóvel, lastreada em vento.
Os reguladores de mercado e agências de risco também engoliram mosca ao não detectar a bola de neve. Esqueceram-se do risco macroeconômico, sistêmico, justamente na nação que é, por excelência, padrão de referência da confiança total. Não mais. Essa crise "subprime", que se tornou crise de bancos e agora se transforma rapidamente em crise geral de crédito, ou seja, de confiança, não será debelada pela mera injeção de mais dólares na praça, como Bernanke tem se limitado a fazer. A figura impoluta de George Washington, estampada na cédula de US$ 1, corre o risco, pela primeira vez, de sair desmoralizada dessa crise.
A histeria especulativa em torno das commodities, cujo preço em dólar não pára de subir, é uma denúncia viva do profundo desequilíbrio da confiança na própria moeda americana. Por sorte, o Brasil ficou, desta vez, do lado poupador, pois acumulamos reservas. Mas não significa que estamos poupados de riscos.


PAULO RABELLO DE CASTRO, 58, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

rabellodecastro@uol.com.br


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