São Paulo, quinta-feira, 12 de maio de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Herança maldita

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Hoje, quero voltar a falar de câmbio (desculpe, leitora, a recorrência do tema). Antes, um pequeno "detour" -ou dois. Primeiro: um leitor protestou contra a minha tendência a quebrar a regra gramatical, que privilegia o uso do masculino. Lamento. Com a explosão inevitável (e bem-vinda) das mulheres no mundo, a regra pode ser sacrificada de vez em quando. Assim, vou continuar invocando "a leitora" quando me der na telha.
Segundo (e mais "à propos"): recentemente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou a viúva de um fazendeiro a pagar pensão à amante do falecido! No "Jornal do Brasil", um jornalista criativo bolou o seguinte título para a notícia: "Herança maldita". Uma alusão debochativa à retórica do governo Lula, evidentemente.
É inevitável que, com o passar do tempo, essa retórica da "herança maldita" fique cada vez mais desgastada. No caso do atual governo, entretanto, sempre houve uma peculiaridade: a incongruência entre as queixas (justas) da herança recebida do governo anterior e o continuísmo no que diz respeito à política econômica. O próprio Fernando Henrique Cardoso logo botou o dedo na ferida: "Se a herança é maldita, por que continuá-la?".
Uma precisão se faz necessária. Até há pouco, uma distinção era razoavelmente clara: o governo Lula dava continuidade à medíocre política macroeconômica do segundo mandato de FHC -e não à desastrosa política do primeiro, marcada pela insistência alucinada na sobrevalorização cambial. Desde 1999, aos trancos e barrancos, o Brasil caminhou na direção de uma taxa de câmbio competitiva, com efeitos positivos sobre o crescimento econômico e as contas externas do país. No que diz respeito às contas externas, esses efeitos começaram a se fazer sentir desde o segundo semestre de 2002; no que se refere ao crescimento da economia, desde fins de 2003.
Infelizmente, de uns tempos para cá, sobretudo agora em 2005, experimentamos uma perigosa recaída na sobrevalorização cambial. Estamos pouco a pouco voltando à época em que o BC era comandado por um Napoleão de hospício, disposto a sacrificar a economia inteira no altar do câmbio forte. Os sintomas são parecidos. Do lado de fora, um número crescente de economistas e empresários percebe o problema e se dispõe a protestar publicamente. Enquanto isso, no "bunker" da diretoria do BC, tudo se passa como se o problema fosse pequeno ou inexistente. "A nossa única meta é a meta de inflação", repetem rotineiramente os diretores do banco.
Um espanto! A turma atual do BC, diferentemente do Napoleão de hospício acima lembrado, tem tido muita sorte. No governo FHC, especialmente no período 1995-1998, ocorreram violentos choques externos, que interagiram com erros e omissões internos para produzir uma sucessão estarrecedora de crises econômicas no país. Desde 2003, ao contrário, o cenário mundial tem sido geralmente muito favorável dos pontos de vista comercial e financeiro. Em grande parte por isso, a sobrevalorização ainda não desencadeou todo o seu potencial destrutivo. "Ognun sa navigar quando è buon vento", diz o provérbio italiano.
Mas não vamos tirar os méritos da equipe econômica. Para o verdadeiro Napoleão Bonaparte, que confiava muito na própria estrela, a sorte era um atributo pessoal, e não questão de mero acaso. Certa vez, ao ser informado das qualidades excepcionais de um novo general -o seu heroísmo, a sua coragem, a sua destreza no campo de batalha etc.-, Napoleão interrompeu impaciente: "Mas ele tem sorte?".
Saímos ganhando, portanto. Trocamos um reles Napoleão de hospício por uma equipe que estaria perfeitamente habilitada a integrar as hostes do verdadeiro e insubstituível Napoleão.
Não vamos esquecer, entretanto, que o Bonaparte autêntico teve o seu Waterloo e acabou em Santa Helena. O Waterloo da equipe econômica será a insistência dogmática na combinação de juros altos e câmbio sobrevalorizado.


Paulo Nogueira Batista Jr., 50, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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