São Paulo, sábado, 12 de junho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Comércio Sul-Sul, depois de amanhã

GESNER OLIVEIRA

A 11ª Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, que será aberta amanhã, ocorre em um momento de busca de novos caminhos para os países em desenvolvimento.
Os sucessivos impasses nas negociações da Rodada Doha em torno do aprofundamento da liberalização multilateral lembraram, uma vez mais, que o comércio internacional é um jogo de paciência. Embora fundamentais, os resultados são magros e demorados. Certamente mais lentos do que aquilo que se esperava em meados dos anos 90, no final da Rodada Uruguai e no início da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Na ausência de maior liberdade de comércio, prevalece uma ordem mundial profundamente injusta. A liberalização avançou mais nos produtos industrializados e muito menos ou quase nada nos produtos agrícolas, em relação aos quais vários países em desenvolvimento apresentam vantagens comparativas. O acesso restrito aos principais mercados dos países mais ricos representa, assim, um dos entraves ao desenvolvimento da maior parte do planeta, impedindo que o comércio contribua para a diminuição da pobreza.
Diante das dificuldades das negociações na OMC e também de acordos regionais mais abrangentes, como o da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), cresceu a importância de acordos bilaterais e plurilaterais que possam abrir novas oportunidades de comércio.
Aumentaram igualmente a relevância e a densidade do comércio Sul-Sul, isto é, entre países em desenvolvimento. Conforme destacado em documento da Unctad, embora o comércio Sul-Sul represente apenas 10% do total, sua taxa de crescimento tem sido elevada e superior à do comércio mundial. Por sua vez, a parcela do comércio detida pelos países em desenvolvimento aumentou de 20%, em meados dos anos 80, para cerca de 30%.
As novas parcerias comerciais não serão construídas a partir de iniciativas isoladas. É retórica e exagerada a afirmação do presidente Lula sobre sua recente visita à China de que, "nesta viagem, estamos dando uma demonstração de que nós poderemos, se soubermos trabalhar, construir uma nova geografia comercial no mundo". De qualquer forma, a continuidade da política externa no sentido da diversificação de mercados é positiva e deveria ser reforçada pelas próximas administrações.
Naturalmente, seria um erro grave imaginar que a crescente importância do comércio Sul-Sul poderia substituir o comércio com os países desenvolvidos, alimentando alguma plataforma terceiro-mundista em pleno século 21. Isso só ocorreria com o advento da nova Era Glacial do filme "O Dia Depois de Amanhã", de Roland Emmerich, em que os habitantes do Norte são obrigados a emigrar para o Sul e sentir na pele o que é ter de implorar por um visto de entrada na fronteira do México.
Fora da ficção, as relações comerciais Norte-Sul continuarão fundamentais. Para o Brasil, por exemplo, a União Européia e os Estados Unidos representaram, respectivamente, 25% e 23% das vendas externas no ano passado.
Mas as iniciativas da Unctad no sentido de aumentar as relações Sul-Sul tendem a criar comércio e estimular as próprias relações com o Norte. Assim, a proposta de uma nova rodada de negociações para a redução de tarifas no âmbito do SGPC (Sistema Geral de Preferências Comerciais) contribui para o sistema mundial.
As discussões da Unctad deverão transcender os temas estritamente de comércio. É impossível falar de comércio na atualidade sem discutir uma ampla gama de outras políticas públicas, como os chamados novos temas de Cingapura: ambiente, investimentos, concorrência, compras governamentais e facilitação do comércio.
Hoje, por exemplo, termina um seminário preparatório da Unctad, no qual foram discutidas as políticas de regulação e de concorrência de países em desenvolvimento. Um conjunto de trabalhos sobre o tema será lançado na próxima semana em livro, "Competition, Competitiveness and Development: Lessons from Developing Countries", editado por Philippe Brusick e outros.
Os avanços nas instituições de comércio são morosos. Os interesses nacionais são freqüentemente contraditórios, e a formação de coalizões vencedoras é um processo complexo que requer tempo, visão de futuro e pertinácia. Os desafios para os países em desenvolvimento são ainda maiores devido à escassez de recursos, à fragilidade institucional e à fragmentação de interesses. Mas começam a surgir bases objetivas para a intensificação das relações Sul-Sul.


Gesner Oliveira, 47, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br

E-mail - gesner@fgvsp.br


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