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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O século 20 brasileiro

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A publicação do IBGE "Estatísticas do Século 20" é um trabalho de fôlego que permite confirmar várias hipóteses sobre a evolução estrutural do Brasil, além de mostrar que o dinamismo da nossa economia acompanhou o movimento cíclico do capitalismo central, exagerando as suas tendências.
Nossa inserção precária no padrão ouro, apoiada no endividamento público externo e no modelo primário exportador, tornou altamente instável o crescimento dos primeiros 30 anos do século. A expansão cafeeira produziu períodos acentuados de superprodução e de queda de preços internacionais, desvalorizações cambiais e deterioração das relações de troca. Na "época de ouro" do capitalismo industrial do pós-guerra, crescemos mais do que os países centrais. Nos últimos 20 anos do século, os ciclos são menos acentuados, mas a tendência à estagnação é visível, com forte aumento do endividamento (externo e interno) e do desemprego estrutural e aberto.
Apesar de a Revolução de 1930/ 32 ter sido contra a dominação política dos "liberais" paulistas, a acumulação de capital privado e a concentração industrial e financeira ocorreram no mesmo espaço do complexo cafeeiro de São Paulo. O movimento acentuou-se até a década de 90, quando começou a desindustrialização motivada pelas políticas de abertura neoliberal. A fotografia da avenida Paulista no começo do século 20, publicada ao lado do atual espigão (Folha, 30/9/2003), é o exemplo da mais gritante e rápida concentração metropolitana de riqueza e de capital do século 20.
Na ausência de uma reforma agrária -que nunca foi patrocinada pelos sucessivos pactos liberal-conservadores nem pelas políticas intervencionistas de cunho populista ou autoritário-, as migrações rurais-urbanas se intensificaram. São Paulo, hoje a terceira megalópole do mundo, concentrou simultaneamente a riqueza e a pobreza urbanas. A cidade adquiriu o perfil socioeconômico atual -uma elite cosmopolita nos negócios, uma vasta e heterogênea classe média, uma ampla classe trabalhadora na indústria e nos serviços funcionais e uma extensíssima e caótica periferia ocupada por sucessivas gerações de migrantes marginalizados. Durante a segunda metade do século, foram produzidos novos centros urbanos de norte a sul do país que expandiram os serviços públicos e melhoraram as condições de vida da população empregada.
A expansão do parque industrial -com exceção das indústrias naval e siderúrgica e das orientadas para os recursos naturais- concentrou-se em São Paulo, que se tornou o maior e mais diversificado mercado produtor e consumidor do país. Com o maior dinamismo da década de 70, o emprego industrial cresceu, dando lugar ao surgimento dos mais importantes sindicatos metalúrgicos, que serviram de base às várias centrais de origem paulista. No começo dos anos 80, surgiu a maior central sindical do país, a CUT, que, além dos metalúrgicos, agregou, em âmbito nacional, os bancários, os petroleiros, os profissionais de educação, de saúde e outros. A crise da dívida externa, a superinflação e a desregulação neoliberal da década de 90 paralisaram o crescimento da renda e do emprego nas últimas duas décadas, mas não os movimentos sociais e a luta política dos trabalhadores.
Mestre Celso Furtado, ao falar de improviso na cerimônia de homenagem que lhe foi prestada no IBGE, disse que o Brasil tinha tido um desenvolvimento deformado. Mais do que as dualidades "clássicas" dos "dois Brasis" (campo-cidade, Bélgica-Índia, pobres e ricos, Nordeste-Sudeste), verificou-se um aumento da heterogeneidade estrutural tanto nos períodos de crescimento como nos de estagnação. Como os tipos de mobilidade social são contraditórios, em termos espaciais, setoriais e sociais, a desigualdade global não parou de crescer. Por isso o coeficiente de Gini piorou. As relações entre média e mediana das rendas das famílias afastaram-se cada vez mais, aumentando também a dispersão, sobretudo dentro das classes médias e até entre os pobres. Em termos de desigualdades sociais, o Brasil é um país "global"! Cabem dentro dele todas as desigualdades do mundo.
Em termos de dinamismo, porém, o nosso "capitalismo selvagem" sempre aproveitou as "janelas de oportunidades" para a acumulação patrimonial (terra rural e urbana e dinheiro) ou para a diversificação dos negócios (agricultura, indústria, infra-estrutura e serviços). O maior desafio do século 21, portanto, é não apenas o crescimento mas o enfrentamento das desigualdades. Na segunda metade do século 20, perdemos as "agrovilas" do projeto JK, a reforma agrária através da desapropriação de terra ao longo dos grandes eixos rodoviários de Jango foi abortada, o Estatuto da Terra do regime militar foi engavetado e a Constituição Cidadã, de 1988, começou a ser desmontada em 1995.
Quero mencionar apenas três pontos que considero requisitos estruturais para mudar o padrão de desenvolvimento concentrador: a reforma agrária, que, além do problema fundiário, teria de defender a agricultura familiar e torná-la compatível com a expansão do agronegócio e da nova infra-estrutura; o crescimento do salário mínimo, que é essencial para regular e reestruturar o mercado de trabalho; e as políticas públicas universais, que teriam de ser ampliadas e abarcar as populações rurais, urbanas e metropolitanas. Só então estaríamos mudando as "condicionalidades" não apenas do "Consenso de Washington" mas da nossa história de modernizações conservadoras. Do contrário, a tendência secular à concentração da renda e da riqueza tende a permanecer, embora se retome o crescimento. Novas fronteiras de expansão e acumulação de capital serão abertas e serão produzidas novas massas de pobreza, para as quais não há políticas focalizadas ou compensatórias que resolvam.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br


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