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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O século 20 brasileiro
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A publicação do IBGE "Estatísticas do Século 20" é um
trabalho de fôlego que permite
confirmar várias hipóteses sobre a
evolução estrutural do Brasil,
além de mostrar que o dinamismo
da nossa economia acompanhou
o movimento cíclico do capitalismo central, exagerando as suas
tendências.
Nossa inserção precária no padrão ouro, apoiada no endividamento público externo e no modelo primário exportador, tornou altamente instável o crescimento
dos primeiros 30 anos do século. A
expansão cafeeira produziu períodos acentuados de superprodução
e de queda de preços internacionais, desvalorizações cambiais e
deterioração das relações de troca.
Na "época de ouro" do capitalismo industrial do pós-guerra, crescemos mais do que os países centrais. Nos últimos 20 anos do século, os ciclos são menos acentuados,
mas a tendência à estagnação é visível, com forte aumento do endividamento (externo e interno) e
do desemprego estrutural e aberto.
Apesar de a Revolução de 1930/
32 ter sido contra a dominação
política dos "liberais" paulistas, a
acumulação de capital privado e a
concentração industrial e financeira ocorreram no mesmo espaço
do complexo cafeeiro de São Paulo. O movimento acentuou-se até
a década de 90, quando começou
a desindustrialização motivada
pelas políticas de abertura neoliberal. A fotografia da avenida
Paulista no começo do século 20,
publicada ao lado do atual espigão (Folha, 30/9/2003), é o exemplo da mais gritante e rápida concentração metropolitana de riqueza e de capital do século 20.
Na ausência de uma reforma
agrária -que nunca foi patrocinada pelos sucessivos pactos liberal-conservadores nem pelas políticas intervencionistas de cunho
populista ou autoritário-, as migrações rurais-urbanas se intensificaram. São Paulo, hoje a terceira
megalópole do mundo, concentrou simultaneamente a riqueza e
a pobreza urbanas. A cidade adquiriu o perfil socioeconômico
atual -uma elite cosmopolita nos
negócios, uma vasta e heterogênea
classe média, uma ampla classe
trabalhadora na indústria e nos
serviços funcionais e uma extensíssima e caótica periferia ocupada por sucessivas gerações de migrantes marginalizados. Durante
a segunda metade do século, foram produzidos novos centros urbanos de norte a sul do país que
expandiram os serviços públicos e
melhoraram as condições de vida
da população empregada.
A expansão do parque industrial -com exceção das indústrias
naval e siderúrgica e das orientadas para os recursos naturais-
concentrou-se em São Paulo, que
se tornou o maior e mais diversificado mercado produtor e consumidor do país. Com o maior dinamismo da década de 70, o emprego industrial cresceu, dando lugar
ao surgimento dos mais importantes sindicatos metalúrgicos,
que serviram de base às várias
centrais de origem paulista. No começo dos anos 80, surgiu a maior
central sindical do país, a CUT,
que, além dos metalúrgicos, agregou, em âmbito nacional, os bancários, os petroleiros, os profissionais de educação, de saúde e outros. A crise da dívida externa, a
superinflação e a desregulação
neoliberal da década de 90 paralisaram o crescimento da renda e do
emprego nas últimas duas décadas, mas não os movimentos sociais e a luta política dos trabalhadores.
Mestre Celso Furtado, ao falar
de improviso na cerimônia de homenagem que lhe foi prestada no
IBGE, disse que o Brasil tinha tido
um desenvolvimento deformado.
Mais do que as dualidades "clássicas" dos "dois Brasis" (campo-cidade, Bélgica-Índia, pobres e ricos,
Nordeste-Sudeste), verificou-se
um aumento da heterogeneidade
estrutural tanto nos períodos de
crescimento como nos de estagnação. Como os tipos de mobilidade
social são contraditórios, em termos espaciais, setoriais e sociais, a
desigualdade global não parou de
crescer. Por isso o coeficiente de Gini piorou. As relações entre média
e mediana das rendas das famílias
afastaram-se cada vez mais, aumentando também a dispersão,
sobretudo dentro das classes médias e até entre os pobres. Em termos de desigualdades sociais, o
Brasil é um país "global"! Cabem
dentro dele todas as desigualdades
do mundo.
Em termos de dinamismo, porém, o nosso "capitalismo selvagem" sempre aproveitou as "janelas de oportunidades" para a acumulação patrimonial (terra rural
e urbana e dinheiro) ou para a diversificação dos negócios (agricultura, indústria, infra-estrutura e
serviços). O maior desafio do século 21, portanto, é não apenas o
crescimento mas o enfrentamento
das desigualdades. Na segunda
metade do século 20, perdemos as
"agrovilas" do projeto JK, a reforma agrária através da desapropriação de terra ao longo dos
grandes eixos rodoviários de Jango foi abortada, o Estatuto da Terra do regime militar foi engavetado e a Constituição Cidadã, de
1988, começou a ser desmontada
em 1995.
Quero mencionar apenas três
pontos que considero requisitos estruturais para mudar o padrão de
desenvolvimento concentrador: a
reforma agrária, que, além do problema fundiário, teria de defender
a agricultura familiar e torná-la
compatível com a expansão do
agronegócio e da nova infra-estrutura; o crescimento do salário mínimo, que é essencial para regular
e reestruturar o mercado de trabalho; e as políticas públicas universais, que teriam de ser ampliadas e
abarcar as populações rurais, urbanas e metropolitanas. Só então
estaríamos mudando as "condicionalidades" não apenas do
"Consenso de Washington" mas
da nossa história de modernizações conservadoras. Do contrário,
a tendência secular à concentração da renda e da riqueza tende a
permanecer, embora se retome o
crescimento. Novas fronteiras de
expansão e acumulação de capital
serão abertas e serão produzidas
novas massas de pobreza, para as
quais não há políticas focalizadas
ou compensatórias que resolvam.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br
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