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RUBENS RICUPERO
Vitrina estilhaçada
Em agenda dominada pela proliferação de armas, o Iraque e o Eixo do Mal, a AL
é irrelevante e prescindível
A PEDRADA da candidatura da
Venezuela ao Conselho de Segurança da ONU fez voar em
mil pedaços a rachada vitrina da
unidade latino-americana que o
nosso presidente tentava esconder
com fita durex. Ao contrário do que
afirmou Lula no discurso da vitória,
nunca o continente esteve tão dividido como agora. Mesmo no auge da
crise de Cuba, havia temas unificadores: o esforço de converter a
Aliança para o Progresso em alavanca de financiamento e industrialização, a criação da Alalc para integrar,
sem exclusões, todos os latinos, do
México à Argentina.
Não se podia prescindir da América Latina em certos problemas da
Guerra Fria: Cuba, a Revolução Sandinista, as guerrilhas em El Salvador
e na Guatemala. Essas questões catalisaram iniciativas da região, com
o fim de evitar a invasão de Cuba,
seu total isolamento ou para mediar
saída pacífica para os dramas centro-americanos. Exemplos notáveis
foram os grupos de Contadora e de
Apoio, com papel decisivo na pacificação da América Central.
No terreno econômico, a prolongada crise da dívida externa motivou
também inúmeras tentativas de
coordenação. Foi a época de ouro
das "ilusões criativas", projetos que
ficaram aquém de suas promessas,
mas que começaram a aproximar os
países: do Grupo Andino ao Mercado Comum Centro-Americano, do
Tratado Amazônico à Aladi, culminando com os acordos Argentina-Brasil da era Sarney-Alfonsín, semente do Mercosul.
O fim sucessivo dos regimes militares, da crise da dívida e, sobretudo,
da Guerra Fria deu lugar a um paradoxo: deixados a si próprios, os latinos se paroquializaram. Não há
mais interesses comuns; apenas
particulares, nacionais ou de vista
curta. Em agenda internacional dominada por terrorismo islâmico,
proliferação de armas, o Iraque, "eixo do mal" e conflito israelense-palestino, a América Latina é irrelevante e, por isso, prescindível.
Os do norte não perderam tempo
em integrar-se ao espaço econômico
norte-americano. Os do sul dividiram-se diante da perspectiva de
acordos de livre comércio com os
Estados Unidos e, um a um, a começar pelo Pacífico -Chile, Peru, Colômbia, amanhã quiçá Equador-,
sucumbiram à poderosa atração do
maior mercado do mundo.
Como se isso não bastasse, a ação
de Chávez acabou de rachar o continente. O impasse na ONU é fruto de
um acúmulo de provocações: as intervenções belicosas em eleições
alheias, a quimera de suposto projeto bolivariano excludente dos EUA,
a diplomacia de hostilidade sistemática aos interesses americanos nos
quatro cantos do globo, a formação
de milícia pessoal armada até os
dentes e o açulamento de ações radicais na Bolívia e em outros países.
A divisão nunca é passiva ou estática; ela tende a gerar conflitos e os
próximos talvez sejam mais destrutivos do que o quase ridículo episódio onusiano. A situação que se
criou é perigosa, devendo ser desmontada o quanto antes.
É possível que o reforço dos democratas nos Estados Unidos ajude
a promover clima mais flexível e
equilibrado na política hemisférica,
mas não se pode contar com isso. Na
provável carência de papel mais esclarecido de Washington, cabe ao
Brasil usar de sua influência de maneira construtiva.
Não tem sentido, por exemplo, recear que nossos interesses fiquem
ameaçados com as ações inspiradas
pelo Grupo Andino, em cooperação
com o Chile e o México, para explorar melhor o potencial econômico
da parceria com a Ásia dentro da Associação dos Países do Pacífico. O
que temos de fazer é ver como podemos nos associar ao projeto.
Caso se viabilize ou não negociação comercial equitativa com os Estados Unidos, o Brasil e o Mercosul
precisam, ao mesmo tempo, celebrar com o México, o Chile, o Peru, a
Colômbia, acordos que ao menos
nos garantam nesses mercados tratamento similar ao dos americanos.
Deve-se salvar o que é possível da
integração energética, desde que
com garantias jurídicas contra violências como as que acaba de praticar a Bolívia.
Um país é prescindível não só por
não ter poder mas quando o tem e
não o usa. Como fizemos, ao abdicar
da defesa de direitos legítimos na
Bolívia ou por receio de ferir suscetibilidades na reunião de Córdoba dominada pela tríade Chávez-Fidel-Kirchner. O Brasil pode ajudar a sarar a ferida da divisão desde que ponha seu poder a serviço do equilíbrio
e da moderação.
RUBENS RICUPERO, 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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