São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Reformas: de quem é a vez?

ANTONIO BARROS DE CASTRO

A revogação no ano de 1846 da Lei dos Cereais foi muito mais do que um marco na história da Inglaterra. Definiu um dos pilares da hegemonia mundial britânica, até a Primeira Guerra Mundial.
No plano doméstico, a supressão das barreiras que até então protegiam a agricultura provocou o barateamento dos alimentos -liberando poder aquisitivo para a aquisição de manufaturas por parte da população inglesa. Além disso, ao se abrir, internacionalmente, o mercado doméstico inglês, aumentava a capacidade de exportar de outros países e, portanto, a sua capacidade de adquirir as manufaturas -em cuja produção a Inglaterra vinha se especializando.
Num conjunto de casos -EUA e Canadá, mas também Argentina e Austrália-, a abertura do mercado inglês acarretou, efetivamente, uma enorme ampliação das oportunidades de comércio. A divisão internacional do trabalho, inaugurada pela Inglaterra, não estava, contudo, isenta de problemas. Antes de mais nada, porque diversos países europeus não seguiram o exemplo e mantiveram fortes esquemas de proteção para os seus produtos. O açúcar, por exemplo, logo se transformou num produto maldito, entre outras razões, pela absurda proteção a ele conferida. Além disso, especializar-se em grãos e carnes revelou-se muito mais proveitoso que fazê-lo em açúcar, café e outros produtos ditos coloniais. Aliás, para a China, sobrou o ópio! O esquema era também altamente instável, e a Inglaterra, ao que tudo indica, dele se valia para exportar sua instabilidade (magnificada) para a periferia.
Mas não se pode negar que se tratava de um projeto grandioso e que trazia benefícios, não apenas para a potência hegemônica como para outros países, aí incluídas certas nações emergentes. A Argentina, com sua fulgurante ascensão ao final do século 19, poderia talvez ser considerada o melhor dos casos.
Aos próprios argentinos coube, no entanto, descobrir um novo e grave problema. O que ocorreria se a liderança do crescimento mundial passasse para países que não tendiam a aceitar qualquer tipo de (grande) divisão internacional do trabalho? Os Estados Unidos, por exemplo, sem deixar de ser poderosos competidores em grãos e carnes, despontavam, no início do século 20, como potência industrial. Pior: e se um líder desse tipo, além de polivalente, se dispusesse a defender, ferrenhamente, interesses singulares, novos e velhos?
Esse é o drama vivido pioneiramente pela Argentina, desde o término da Primeira Guerra Mundial. A ascensão de Perón e muito particularmente seu comprometimento obsessivo com a expansão do mercado interno -e, inicialmente, com a industrialização- refletem essa percepção.
O drama pressentido pela Argentina dos anos 1920 e 30 está se convertendo num dos pesadelos da atualidade. E, há que insistir, não apenas pela poliaptidão da potência hegemônica como pela sua singular disposição a defender interesses particulares, sem nem sequer ter em conta os seus próprios interesses gerais. E isso, ao que parece, por uma lesão muito profunda: "...porque os Estados Unidos têm um governo facilmente influenciado por lobbies" (easily lobbied). Consequentemente "sua políticas industriais servem prioritariamente aos interesses de indústrias decadentes, politicamente bem conectadas, (e) não ao objetivo de empregos de alto valor agregado para os americanos" (Chalmers Johnson, em "The Developmental State", Cornell University Press, 1999).
Em suma, aqueles países da periferia que, por esforço de suas empresas domésticas e também por acolher exitosamente multinacionais, se capacitaram para produzir, a custos competitivos, numerosos produtos (e poderão acentuar isso nos próximos anos), tropeçam hoje com uma muralha de proteção. Essa é estimada hoje em US$ 200 bilhões, somente no que toca a subsídios para a agricultura. Com razão afirma o ministro brasileiro que o nosso problema não é mais competir em custos. O problema é que "não podemos competir com os Tesouros dos países mais desenvolvidos do mundo".
Estaria talvez em tempo de pensar o equivalente contemporâneo de uma Lei dos Cereais. Em vez disso, o que vemos hoje, além da multiplicação de artifícios e casos especiais, é a recomendação de que as nações emergentes mergulhem em novas e profundas reformas.


Antonio Barros de Castro, 58, professor titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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