São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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LUÍS NASSIF

Homenagem ao gênio

Deu no "Jornal do Commercio", de Recife. Nem sei se o anunciado chegou a acontecer. Mas, se ocorreu, houve o reconhecimento justo, e em vida, de um gênio da música brasileira. Em reportagem de José Telles, o jornal noticiou que, no relançamento do Projeto Pixinguinha, o presidente Lula iria homenagear Francisco Soares de Araújo, o Canhoto da Paraíba, no Palácio do Planalto.
Hoje ele tem 76 anos. Faz seis anos que um derrame o derrubou. Faz seis anos e poucos meses que o vi pela última vez. Canhoto se apresentou em um show da Umes. Convidei-o para um sarau após o show. Ele foi até a casa de um amigo, no Morumbi, onde o sarau se realizava, apenas para dizer que não tinha condições físicas de atender ao convite. Colibri me chamou na porta, me levou até o carro, e lá estava Canhoto, o doce Canhoto, meio cochilando e pedindo desculpas por não ter condições de varar a noite.
Nunca vi pessoa tão doce, poucas vezes ouvi músico tão talentoso. Só os do choro podem ter uma idéia do que foi Canhoto da Paraíba para a música brasileira. Ele foi sucessor direto de João Pernambuco, herdeiro direto da escola de choro pernambucana.
Tocava violão com a mão esquerda sem inverter as cordas. No violão, o dedão serve para tocar o bordão, as cordas de cima. Especialmente o indicador e o médio, às vezes o anular, se revezam nas cordas agudas, as primas. Nos acordes entram todos os dedos, incluindo o mínimo. Quando o canhoto sola sem inverter as cordas, onde há dois ou três dedos solando entra apenas o dedão. Provavelmente ele trazia o indicador como reforço ao dedão. Confesso que nunca reparei, porque, quando Canhoto começava a tocar, a música encobria tudo.
Conheci a lenda antes de conhecer o músico. Nelsinho Risada, nosso guru do Bar do Alemão, se referia ao Sacristão, um violonista genial de Pernambuco, que aparecera num dia qualquer de 1959 no Rio de Janeiro, depois de cinco dias de viagem de jipe. Lá, se apresentara para Jacob do Bandolim.
Só constatei que Sacristão era o Canhoto da Paraíba quando Paulinho da Viola patrocinou um LP de Canhoto, em fins dos anos 70, no qual contava a história do encontro. Jacob convidou Pixinguinha e Radamés para ouvirem Canhoto. Radamés ficou tão entusiasmado com o som que jogou para o alto a bebida do seu copo. Ficou uma marca no teto da casa, que Jacob fez questão de jamais remover.
Depois, Canhoto voltou a sua terra, até ser redescoberto por Paulinho. Quando aquele som chegou até nós, aqui do centro-sul, foi uma descoberta inacreditável, um impacto do nível que tivemos ao conhecer a obra de Garoto. Depois, um show inesquecível no Municipal de São Paulo, que juntou Canhoto, Paulo Moura, Izaias, Copinha. No final, quando todos interpretaram o "Pisando em Brasa", dele próprio, Canhoto transcendeu. Além de compositor emérito, sua capacidade de improviso, típica da escola pernambucana, deixou a todos boquiabertos. Em São Paulo, ouvi algo semelhante no bandolim do seu João Macambira -que está se apresentando às quartas-feiras no Bar do Alemão.
Segundo a reportagem, Canhoto enviuvou há um ano e mora com as filhas em Maranguape. As filhas inspiraram algumas valsas clássicas dele. Nasceu em Princesa Isabel, no sertão da Paraíba. Aprendeu violão com 12 anos e aos 25 mudou-se para Recife.
O primeiro LP, "Único Amor", saiu pelo selo Rozenblit. O último CD, "Pisando em Brasas", pela Kuarup, graças à dedicação ímpar de Raphael Rabello -que Canhoto considera o maior violonista que conheceu.
Ao repórter, Canhoto contou que, para recebê-lo, na famosa viagem ao Rio, Jacob do Bandolim enfeitou a frente da casa com bandeirolas. E que a música que levou Radamés a jogar o copo para o teto foi "Lembrança que Ficou".
Finalmente, contou que, em algum lugar de sua casa, existe uma fita de gravações que ele fez com Raphael Rabello. A Prefeitura de Recife ou o governo de Pernambuco devem ao Brasil o resgate e a gravação desse momento que juntou dois dos maiores violonistas da história.


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