São Paulo, quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Contra o medo da ampliação da capacidade

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Na fase clássica da industrialização brasileira (1940-1980), a questão fundamental a ser resolvida pelas políticas industriais era a criação de capacidade produtiva. Não era fácil implantar nova capacidade -especialmente em atividades manufatureiras ainda não existentes no país. Havia problemas de infra-estrutura, de tecnologia e de financiamento a serem resolvidos, bem como a delicada questão da escolha do(s) empresário(s). Uma vez instalada e posta em operação a nova capacidade, porém, diversos problemas tendiam a se resolver por si mesmos.
Hirschman dizia que, por meio de efeitos "para trás e para diante", os próprios desequilíbrios acarretados pelos avanços recentemente ocorridos se encarregavam de mobilizar energias e orientar as respostas subsequentes (até por parte dos poderes públicos). Além disso, empresários, gerentes e trabalhadores podiam, em proporção muito maior do que na atualidade, habilitar-se para suas novas funções, exercendo-as. Em outras palavras, a pressão competitiva relativamente frouxa não exigia grande preparo ou habilitação prévia nem que o aproveitamento das instalações, dos materiais manipulados e dos recursos humanos reunidos pela empresa fossem incessantemente revistos e modificados.
Por último, mas não menos importante, os novos setores, muito provavelmente, tinham uma produtividade maior do que a produtividade média da economia. Assim sendo, a mera entrada em operação das novas atividades acarretava, para a economia como um todo, crescimento e, até mesmo, desenvolvimento.
Independentemente do maior ou menor acerto dessa visão (a que Hirschman se referia como "micromarxismo"), não cabe dúvida de que estamos hoje diante de um quadro radicalmente diferente. Primeiramente porque, de 1980 em diante, esta economia atravessou uma interminável sucessão de asfixias de demanda, situação em que parte pelo menos da capacidade produtiva passa a ser antes problema que solução. Além disso, porque as empresas foram progressivamente submetidas a pressões competitivas impensáveis na fase de industrialização acelerada (até 1980) e desconhecidas antes de 1990.
Farei referência aqui, unicamente, à questão da pressão competitiva, já que a maré enchente da liquidez internacional e a boa forma recentemente adquirida pela macroeconomia doméstica sugerem que não deverão ocorrer, a curto e, talvez, a médio prazo, reduções bruscas da demanda global com que se defrontam as empresas...
Não é difícil perceber que a concorrência vai se tornando, internacionalmente, cada vez mais intensa. No tocante a preços, isso se traduz na deflação observada, sobretudo, nos mercados de produtos industrializados. Tão ou mais patente, contudo, é a nova dimensão da concorrência caracterizada pelo "passeio" internacional de plantas industriais. A migração de fábricas do México para a China é apenas a sua mais rumorosa manifestação. Se esse tipo de problema atinge todos os países, a questão se coloca de forma particularmente séria para o Brasil. Isso porque aqui são pagos salários comparativamente elevados (em relação aos praticados, na produção dos mesmos artigos, nos novos competidores) e a carga tributária é bastante alta (ainda quando possivelmente indispensável para que o país chegue um dia a enfrentar, devidamente, os seus problemas sociais).
É contra esse pano de fundo que devem ser discutidos o significado e as funções das políticas industriais e tecnológicas a serem daqui por diante implantadas. Só muito excepcionalmente elas deveriam fomentar, como no passado, a implantação de capacidade produtiva em setores vistos como atrasados. E tampouco seria a sua função maior, como querem muitos, compensar falhas convencionais de mercado.
Em suma, as novas políticas deveriam ajudar as empresas a proteger-se da competição predatória a que estão cada vez mais sujeitas. A proteção seria buscada mediante inovações (no sentido amplo do termo e tendo como referência tanto atividades de fronteira quanto tradicionais) que explorem o potencial inerente ao conjunto de recursos sob comando das empresas. E, nesse conjunto, haveria de merecer especial atenção o conhecimento já desenvolvido, bem como aquele ainda em fase incipiente de desenvolvimento.
Ainda quando esse tipo de recomendação possa ser feito para diferentes países, o Brasil parece ser um caso muito especial a esse respeito. Afinal, dificilmente uma outra economia teve as suas empresas submetidas a tantas crises e choques -e passou pela abertura preservando uma estrutura tão diversificada e heterogênea.
A sociedade ganharia com isso na medida em que, como resultado da autoproteção (apoiada por políticas públicas), as empresas pudessem manter e aumentar, ao longo do tempo, os salários de seus colaboradores. Além disso, o Estado estaria promovendo, por meio desse tipo de política, o avanço do conhecimento (num sentido assumidamente amplo do termo) de todos aqueles direta ou indiretamente envolvidos na produção. Esse conhecimento, em primeira instância, pertence às empresas. Mas, como observou Nelson, dadas as dificuldades inerentes à apropriação/retenção de conhecimento no mundo atual, "ele não se mantém privado; ele vaza ("leaks away') e se torna público".
Ao anterior deve ser acrescentado que, logrando proteger-se, as empresas industriais escapariam ao "medo da ampliação de capacidade". No essencial, essa enfermidade (detectada por Kaldor, na Inglaterra, há mais de 40 anos) significa que as dificuldades se mostram mais capazes de inibir a formação de nova capacidade do que as oportunidades de induzir a sua expansão. Que o medo do excesso de capacidade se justificava de 1980 até o presente, especialmente ali onde o país não desfruta de óbvias vantagens comparativas, não cabe dúvida, e muitos pagaram caro por ignorar esse fato. Trata-se, no entanto, de impedir que, num quadro em que os tombos de demanda global passam a ser muito menos prováveis, o referido temor passe a derivar da exacerbação da competição. E é aqui que caberia, insisto, a autoproteção via inovação, alavancada por políticas industriais e tecnológicas.


Antonio Barros de Castro, 65, professor titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, na coluna.


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