São Paulo, segunda, 14 de abril de 1997.

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ARTIGO
Ou se restabelece a moralidade ou...

LUIZ PINGUELLI ROSA
Existe num país mulato chamado Brasil uma empresinha chamada Vale do Rio Doce, que terá que ser vendida, rapidinho e barato, por ordem dada, via Internet, pelo rei branco de todos os países mulatos globalizados, que vive num castelo branco, cheio de bombas nucleares, muito ao norte, onde cai neve, branquinha, no inverno.
Por ter criticado essa venda apressada, um dos mais sérios bispos brasileiros foi xingado por um amigo do vice-rei, que, segundo saiu na imprensa, fez o papel de bobo da corte.
A empresinha tem apenas 54 empresas controladas por ela, dentre as quais 5 das 10 maiores exportadoras do país, lidera o comércio mundial de minério de ferro, é o maior produtor de alumínio e ouro da América Latina.
Tem áreas que somam quatro vezes o Estado do Rio de Janeiro, mais que vários países europeus, com rios, florestas, parte da Amazônia, terras indígenas.
Tem reservas de minérios, em toneladas: de ferro, 41 bilhões; de cobre, 994 milhões; de bauxita, 678 milhões; de manganês, 72 milhões; de níquel, 70 milhões; de zinco, 9 milhões; de urânio, 1,8 milhão; de titânio, 1 milhão; de tungstênio, 510 mil; de nióbio, 60 mil; de ouro, 56,3.
Fora isso, produz papel de celulose, aço, tem ferrovias, navios, portos, desenvolve tecnologia. Sua receita bruta é cerca de US$ 5,5 bilhões. Investe 8% de seu lucro em programas regionais de cunho social. Tudo isso será vendido apenas por um mês de juros da dívida interna. Foi só isso que levou alguns membros da corte a se descabelarem, xingando gente séria.
O presidente do BNDES fez considerações pouco inteligentes sobre o relatório do Grupo de Assessoramento Técnico (GAT) da Comissão Externa da Câmara dos Deputados encarregada de examinar a venda da Vale.
O documento distribuído por ele incorre em erros de natureza científica e revela falta de informação sobre o setor mineral. Reconhece a existência de urânio em Carajás, apontada pelo relatório, fato até então omitido.
Ao afirmar que "nem toda ocorrência de urânio pertence à União" entra em choque com a Constituição. Além do urânio, foram omitidos ouro e cobre descobertos em Carajás. Nada havia também no "data room" do BNDES sobre titânio. A alegação em contrário é inverídica. O anexo do relatório da MRDI (Mineral Resources Development Inc.), citado pelo BNDES, foi colocado no arquivo posteriormente.
O presidente do BNDES se equivocou completamente ao criticar o GAT por ter corretamente apontado enorme diferença na avaliação dos recursos e reservas da Vale. O GAT toma valores baixos para reservas "in situ" (no subsolo), que o presidente do BNDES confunde com o valor "minegate", cometendo um erro de 1 para 80.
As diferenças na avaliação pelo consórcio liderado pela Merrill Lynch foram sempre para menos, contra os interesses da União. Imensa parte dos minérios está sendo presenteada, pois a Merrill Lynch considera tudo que será explorado após 30 anos com valor zero, pelo fluxo de caixa descontado, e a Vale tem minérios para bem mais de cem anos.
O BNDES diz que, "no caso do modelo de venda, estas reservas e recursos que subsistem para além do fluxo de caixa projetados e ainda as demais descobertas posteriores serão remuneradas através de dois mecanismos distintos, debêntures e contrato de risco".
Por esta assertiva, estaria incluído o minério de ferro. Houve, portanto, um engano do BNDES, pois as reservas de minério de ferro estão, segundo o próprio BNDES, fora das "salvaguardas" criadas para tratar de descobertas futuras.
Sobre o alumínio, o BNDES tenta amenizar a sugestão da Merrill Lynch de desativar a unidade da Alunorte, dizendo que isso não ocorrerá "caso seja efetivamente estratégico". O empreendimento é estratégico ou não é?
O documento do BNDES diz que o ouro está contemplado "pelos contratos de risco e acessoriamente pelos debêntures participativas". Esta afirmação não corresponde à realidade, por duas razões básicas.
Contratos de risco não salvaguardam os direitos minerários dos atuais acionistas, seja a União ou não. O mineral retirado do subsolo, que já é do atual acionista, voltará para suas mãos dividido em partes iguais com seu novo parceiro.
O debênture participativa é, também, um mecanismo artificial. A garantia oferecida é a de um percentual sobre um valor presumível que poderá ou não vir a ser realizado. Depende do comprador investir ou não naquele negócio e o prazo de validade do papel não estar previamente fixado.
Trata-se de uma simples promessa de remuneração sobre um direito já existente. Lembra os recibos de "barrancos" que eram dados como garantia a incautos no garimpo de Serra Pelada.
As divergências que apontamos com dados técnicos não foram refutadas, sendo recomendável que o governo suste o leilão para esclarecer a denúncia da Comissão Externa, reconhecida como verdadeira pela resposta do BNDES, de que a Merrill Lynch, contratada pelo BNDES para modelar e coordenar a venda, tem ligação comercial, por intermédio da SBH, com a Anglo American, uma compradora potencial.
Em vez de apurar isso, a direção do BNDES defende a Merrill Lynch usando instruções vindas de Nova York e passadas em inglês por um fax pessoal na véspera da coletiva do presidente do banco. Por falarem esta verdade, ele ameaça processar membros do GAT, em vez de processar a Merrill Lynch.
Acredito que mesmo as pessoas a favor de privatizar a Vale não podem concordar com este processo de venda, denunciado pelos presidentes e dirigentes de OAB, ABI, SBPC, CNBB, IAB e Clube de Engenharia, em recente reunião no Rio.
Agora o BNDES quer estender o privilégio de participar da compra ao Bradesco, que também participou da avaliação. Antes não podia, era errado. Não é mais? Como diria um carioca bem-humorado, Sergio Porto, ou se restabelece a moralidade ou se locupletarão todos eles: Merrill Lynch, Anglo American e Bradesco.


Luiz Pinguelli Rosa, 50, físico, é professor titular e diretor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e presidente da Associação Latino-Americana de Planejamento Energético.

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