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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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PT ESTRÉIA EM WASHINGTON

Palocci tenta reinventar a ortodoxia do FMI

Para Palocci, acordo com o FMI é o preço a pagar pela distância entre o sonho e a realidade


Na visão do ministro, política industrial deveria privilegiar projetos como o genoma



Lista eclética de colaboradores inclui Delfim Netto, Sachs, Coutinho, Fishlow e Conceição Tavares


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A WASHINGTON

Quando embarcou em São Paulo para Washington, na quinta-feira, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, foi cumprimentado por uma passageira que também iria para a reunião de primavera do Fundo Monetário Internacional/Banco Mundial.
"Mas eu vou ficar do lado de fora, participando dos protestos", avisou a passageira.
Fosse há um ano ou um pouco mais, esse médico sanitarista de 42 anos, paulista de Ribeirão Preto, faria companhia a sua interlocutora do avião.
"Devo certamente ter participado de manifestações contra o FMI", diz Palocci, agora transformado em estrela do outro campo, o lado da barricada protegido de manifestações por um formidável cordão policial.
A mudança de lado lhe dá uma vantagem: faz críticas, embora bem menos violentas que os slogans anti-FMI dos manifestantes, diretamente aos responsáveis pelas políticas do Fundo.
Criticou, por exemplo, a imposição de programas. "Deixem que cada país faça seu programa. Se for maluco, vocês não dão o dinheiro", disse aos técnicos e dirigentes do FMI com os quais se avistou em Washington.
Criticou também a falta de atenção do Fundo para com problemas sociais e atacou o excesso de detalhes que o FMI queria pendurar no acordo com o Brasil.
Detalhes como a data para o envio da nova CPMF ou de outros impostos. "Nós nos comprometemos a fazer a reforma tributária. Por isso, esses detalhes não têm cabimento", reagiu.
Os detalhes sumiram, o que permite ao ministro dizer que o programa em execução foi decidido autonomamente pelo governo brasileiro. É uma tese de difícil venda ao público interno, até porque a linguagem do Fundo também é essa: os programas devem ser "de propriedade" dos países que recorrem a ele.
Da mesma forma, o superávit fiscal primário (receitas menos despesas do governo, excluídos os juros) foi aumentado de 3,75% do PIB, no governo anterior, para 4,25% no governo do PT por decisão deste, não por imposição.
Mas, de novo, houve coincidência: os técnicos do Fundo chegaram a pedir ao então ministro Pedro Malan um aumento do superávit. Malan disse que nada poderia fazer sem a concordância do novo governo, já eleito. E a meta de ficou, então, como estava.
Cem dias depois da posse, pilotando um formidável aperto fiscal e monetário e saboreando alguns indicadores econômicos que sorriem para o Brasil, como diz Palocci, o ministro pôde estrear no FMI com a primeira heterodoxia do governo do PT.
Nada que se pareça com o "abaixo o FMI" que o trotskista Palocci deve ter gritado em algum momento de sua juventude.
É apenas uma proposta clássica, batizada de superávit fiscal contracíclico. Significa que, quando a economia vai bem, o governo aumenta o superávit, para poder reduzi-lo na hora do aperto econômico, para estimular a economia.
Esteve em discussão desde a transição e foi lançada agora justamente para dar um sinal de que o governo Lula quer, quando puder, tomar um rumo diferente do que foi seguido na gestão Fernando Henrique Cardoso, fortemente criticada pelo PT.
A estréia de Palocci não poderia ter sido mais bem sucedida: a proposta contracíclica foi discutida com Anoop Singh, o economista indiano que é o chefe do Departamento de Hemisfério Ocidental do Fundo e, por isso, o supervisor do acordo entre o FMI e o Brasil.
Singh constatou o óbvio, ou seja, que o mecanismo não é nenhuma invenção heterodoxa e disse que não tem nada a opor, desde que o novo modelo seja adotado no momento adequado.
Palocci conversou também sobre a proposta com a delegação do Chile, país que adota o sistema com certo êxito. "Levamos dez anos de bom comportamento fiscal, antes de introduzir o superávit contracíclico", ouviu o ministro. "O Brasil certamente não vai precisar de todo esse tempo", acha Palocci.
O otimismo talvez se deva ao fato de o ministro ter na cabeça os pulinhos de raiva e frustração da economista petista Maria da Conceição Tavares na última vez em que esteve em seu gabinete.
Maria da Conceição é contra a elevação dos juros, é contra uma política fiscal mais apertada e é sempre espalhafatosa, daí os pulinhos. Mas admitiu à bancada do PT, conforme a Folha já relatou, e ao próprio Palocci que não há, por enquanto, outro caminho.
Se dependesse, aliás, de consultas a economistas para encontrar alternativas, elas já teriam surgido, talvez até de forma absolutamente contraditória.
Palocci consulta regularmente um conjunto de economistas do Brasil e do exterior. De fora, a lista inclui um eclético time que começa com Jeffrey Sachs, que a revista "Time" chamou certa vez de o economista mais importante do mundo e é um feroz crítico do Fundo.
Outro crítico contundente da ortodoxia que está na lista de Palocci é Joseph Stiglitz, que foi assessor do presidente Bill Clinton, economista-chefe do Banco Mundial, e saiu atirando contra os programas da sua ex-instituição e do Fundo Monetário.
Há também o brasileiro radicado no exterior José Alexandre Scheinkman, que fez carreira brilhante na Universidade de Chicago, a mãe do ultraliberalismo, mas tem idéias muito mais instigantes do que esse rótulo, que ele aliás rejeita.
A lista termina com Albert Fishlow, amigo pessoal de Fernando Henrique Cardoso. Amanhã, em Nova York, Palocci reúne-se com os quatro ao vivo e em cores.
No Brasil, a lista não é menos ecumênica. Vai de Delfim Netto a Maria da Conceição Tavares, ex-inimigos mortais nos tempos do regime militar, passa por Luciano Coutinho, que poderia ser facilmente chamado de "desenvolvimentista", e por Paul Singer, petista histórico que ainda hoje reivindica o rótulo de "socialista".
Na sua estréia no FMI, Palocci, além de falar do novo modelo de superávit fiscal, ouviu muito mais que falou sobre a CAC (Cláusula de Ação Coletiva).
Trata-se de mecanismo pelo qual os papéis do país que os lança no mercado já contêm cláusula que permite uma renegociação (que, no fundo, é sempre um tipo de calote). Mas a renegociação não dependeria da concordância da totalidade dos credores, ao contrário do que ocorre hoje.
O secretário norte-americano do Tesouro, John Snow, sugeriu que o Brasil adotasse a CAC nos seus próximos lançamentos de títulos. Palocci ouviu mas não tem certeza de que a oportunidade seja boa.
"Numa situação ainda de incerteza, qualquer novidade pode fazer subir o custo para o Brasil", diz, ainda saboreando os fartíssimos elogios a sua política econômica e o não menos farto canelone do Teatro Goldoni, onde jantou no sábado.
A catarata de elogios não parece ter subido à cabeça do ministro. Ele sabe que vêm como retribuição a uma política imposta pelas circunstâncias, não decidida pelo partido. E acredita que se devam também a um jogo de interesses.
O governo do PT tem óbvio interesse em que o programa acertado com o Fundo dê certo. Já o Fundo, acredita o ministro, também torce para tudo dar certo porque o naufrágio do Brasil arranharia irremediavelmente a imagem da instituição, já abalada pelas críticas sofridas por seu desempenho na crise asiática, entre tantas outras.
Certamente não é uma situação que o trotskista Palocci aceitaria. Mas, como prefeito de Ribeirão Preto, aprendeu que, entre o sonho e a realidade, "é preciso pagar as contas".
É o que está fazendo, como ministro da Fazenda. Por enquanto, só está pagando as contas cobradas pelos mercados financeiros.
Espera que chegue, logo, o momento de pagar a formidável dívida social que o Brasil acumula secularmente.
Palocci pediu estudos aos técnicos do governo e verificou que nem mesmo o crescimento econômico, do qual não há ainda sinais sólidos no Brasil, é capaz de mudar a distribuição de renda.
"Aí, o governo precisa mesmo intervir", diz.
Para o crescimento, acha que a vitalidade da economia dará respostas automáticas, assim que forem superados constrangimentos como os juros muito altos.
Mas, para mexer na distribuição de renda, só mesmo com mecanismos como a reforma agrária, o direcionamento do crédito do Banco do Brasil e do BNDES para as pequenas e médias empresas (as grandes empregadoras) e como itens da reforma tributária que elevarão a taxação de heranças e reduzirão a da cesta básica.
Também está em discussão outra heresia para paladares ortodoxos: política industrial, ou seja, o apoio oficial a setores produtivos. Quais?
O ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, sugere eletroeletrônicos e químico. Palocci tem suas dúvidas. Acha que talvez tenha passado o tempo dos eletroeletrônicos.
O ministro das Comunicações, Miro Teixeira, propõe investir na TV digital. De novo, Palocci se pergunta se vale mesmo a pena entrar nesse território. "Vai ser preciso colocar bilhões até que haja retorno, se houver", imagina.
Se dependesse só dele, o ministro apostaria no Projeto Genoma. "Nessa área, o Brasil tem qualidade indiscutível", afirma, aí sim muito seguro.
Por ora, no entanto, sua linguagem na estréia no Fundo foi a de um ministro técnico, não a de um político petista, de esquerda ou desenvolvimentista.
Se, nos próximos cinco meses, a situação econômico-financeira do Brasil melhorar, aí sim pode haver uma inflexão importante: Palocci pensa em levar Lula para a reunião de setembro do FMI, a se realizar em Dubai.
Não seria apenas para receber os elogios que choveram sobre o presidente em Washington, mas para falar em nome de pelo menos alguns países emergentes sobre as carências do próprio FMI e dos mercados.
Se conseguir, talvez, na próxima vez, Palocci receba um cumprimento bem mais caloroso da moça que viajou com ele para Washington, mas foi para o outro lado das barricadas.


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