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DUAS VISÕES SOBRE TV DIGITAL
Escolha compromete futuro por benefício pífio do presente
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL
Em meados da década de 70, o
poderoso "Sistema Bell", que
englobava então toda a telefonia
dos EUA, do Canadá e muito do
tráfego internacional de comunicações, lançou uma concorrência
internacional para a primeira encomenda de fibras óticas. Essa inovação havia ocorrido graças a uma
colaboração entre os laboratórios
da própria Bell e a Corning, uma
empresa especializada em vidros.
Não obstante, ganha a concorrência uma empresa japonesa, a
Fujitsu. O governo americano interveio contra essa aquisição, sob o
argumento de que a produção fora
do país acarretaria perda de capacidade tecnológica. Os japoneses
ofereceram-se, então, para montar
uma fábrica nos EUA, o que foi rechaçado com ainda maior vigor
pelo governo americano. E a aquisição teve que ser realizada nos
EUA, em empresa americana.
Ora, os EUA não estavam apenas defendendo uma indústria
própria. Antes de mais nada, preservavam seu desenvolvimento
tecnológico futuro. Embora possuíssem um aparato tecnológico
muito mais avançado à época do
que o Japão, sabiam que perderiam essa vantagem com a cessão
do próprio mercado.
A implantação de uma fábrica
japonesa nos EUA traria certamente vantagens a curto prazo
(investimentos) e a médio prazo
(empregos, renda etc). Todavia, a
longo prazo, haveria prejuízos irreparáveis para a indústria americana, como perdas de competitividade devido à redução de atividades de pesquisas, que, por sua vez,
tornariam-se insustentáveis sem
níveis adequados de produção.
Outro fator que justificaria em si
a decisão protecionista americana
é a cultura empresarial característica da indústria japonesa. Quantas indústrias de autopeças brasileiras conseguem fornecer para
montadoras japonesas? Preferem
essas importar ou trazer uma fornecedora do Japão. Basta lembrar
que praticamente todo o sistema
produtivo japonês é composto por
apenas seis gigantescos conglomerados, ou melhor, feudos.
Pois bem, o Brasil, depois de longas discussões, escolheu a tecnologia japonesa para seu sistema de
TV. Mostrou coragem. Nenhum
outro país do mundo o fez, senão o
próprio Japão, cuja televisão é estatizada e, portanto, funciona também como agência reguladora. A
diferença essencial entre a tecnologia japonesa e as duas outras é que
a primeira faz com que todo usuário eventual se submeta às empresas de televisão, enquanto com a
adoção de uma das outras tecnologias a telefonia móvel e outras formas de comunicação interativa se
tornam autônomas, ou seja, não
precisam ser intermediadas pelas
empresas de televisão.
Podemos compreender, portanto, por que as empresas de TV escolheram e moveram mundos e
fundos para que fosse escolhida a
tecnologia japonesa. Pode-se imaginar que imenso poder político e
financeiro conseguiram. Qualquer
outra consideração sobre características tecnológicas ou patrimonial é perfumaria.
Para compensar essa faceta negativa da escolha, o Brasil receberia de presente duas fábricas, uma
de semicondutores (componentes) e outra de monitores a plasma.
Espera-se, com isso, economizar
US$ 1 bilhão anualmente com a
substituição de importações. E
também empregos serão criados.
Todavia novamente se compromete o futuro em troca de benefícios pífios do presente. Ocupam-se espaços tecnológicos presentes
e futuros e mercados imensos. São
R$ 2 bilhões de investimentos nas
duas fábricas. Entretanto, só os
conversores a serem inseridos nos
atuais aparelhos necessários para a
tecnologia digital já representam
um mercado de R$ 30 bilhões a R$
50 bilhões. Esses japoneses são vivos, não são? Aprenderam com os
gregos, os que derrotaram Tróia.
Outra grande perda é a da convivência e trocas tecnológicas e comerciais com o resto do mundo.
Portanto ninguém poderá acreditar que a escolha da tecnologia japonesa foi feita por razões de ordem tecnológica ou mesmo econômica. Também não há nenhuma urgência quanto à implantação de um sistema digital no Brasil. Quase nenhum país do mundo
implantou, de fato, a TV digital.
Nem os EUA nem o próprio Japão,
onde apenas duas cidades a experimentam atualmente.
Então por que esse açodamento
histérico? Falou-se na necessidade
vital para a Copa do Mundo ou para o Sete de Setembro, absurdos
tecnológicos e financeiros, que
apenas os apoucados tradicionais
analistas podem conceber. Só há
uma explicação. Vamos ver se você, caro leitor inteligente, é capaz
de adivinhar. Plim-Plim!
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e
membro do Conselho Editorial da Folha.
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