|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Tragédia de erros
RUBENS RICUPERO
O assunto não é engraçado.
Não merece ser chamado de
comédia, nem por figura de retórica. No episódio do gás boliviano, o
governo brasileiro tropeçou de erro
em erro, cada um gerando o seguinte com mais gravidade. Deveria constituir um "caso para estudo" no Instituto Rio Branco, tal sua
coerência de seqüência de equívocos não-contaminados por acertos.
Vejamos.
1) O governo não acreditou que a
nacionalização anunciada por Evo
Morales era para valer. Terá pensado que, como aqui, não passava
de bravata.
2) Após a eleição e a posse, não
interpretou bem os sinais de radicalização emitidos pelo presidente,
vice e ministro de Energia do país
vizinho. Deixou-se enganar pelo
discurso de duplicidade. Não tornou claro que, embora estivesse
disposto a colaborar ao máximo
com La Paz, não aceitaria violação
dos direitos consolidados em tratados e acordos.
3) Uma semana antes, o secretário-geral do Itamaraty esteve na
Bolívia e nada lhe disseram. Quando o raio tombou, o chanceler estava em Genebra, o presidente da Petrobras, no Texas, e o governo foi
surpreendido de calças na mão.
4) A nota oficial do Planalto não
formalizou protesto pela ação unilateral e violenta de infração de
compromissos. Ao contrário, reconheceu descabidamente a soberania da Bolívia, isto é, seu direito de
nacionalizar como se o ato não levasse à conseqüência de rasgar os
compromissos com o Brasil. Esqueceu que a soberania, como a liberdade de cada um, termina onde começa a alheia, sobretudo quando
ela foi usada no passado para assumir obrigações com o Brasil e a Petrobras. Foi incoerente com a "Carta ao Povo Brasileiro", em que se
afirmou a importância de honrar
os contratos.
5) Engoliu a absurda reunião a
quatro, com a participação de Chávez, como Pilatos no Credo. Jogou
fora a tradição de Rio Branco de
que o Brasil não delega a terceiros
a defesa de seus direitos. No caso do
Acre, o Barão repeliu a pretensão
peruana de negociar a três; primeiro resolveu o assunto com a Bolívia
e só depois negociou com o Peru.
6) Depois da reunião, o presidente ainda falava em "carinho" e solapava a firmeza da Petrobras. Resignou-se a negociar sob pressão de
tropas, com a Petrobras ocupada
por funcionários bolivianos, ultimato de datas e ameaça de expulsão em caso de recusa de aumento
de preços já anunciado de público
na porcentagem e no montante.
Compare-se com o Acre. Quando o
presidente da Bolívia ameaçou reprimir a rebelião brasileira, Rio
Branco declarou: "O sr. presidente
Pando entendeu que é possível negociar marchando com tropas para
o norte. Nós negociaremos também
fazendo adiantar forças para o sul.
O governo brasileiro continua
pronto para negociar um acordo
honroso e satisfatório para as duas
partes".
O que fazer agora, depois que as
declarações de Morales em Viena
tripudiaram sobre a fraqueza brasileira? Preparar-se para o pior. Isso não quer dizer, como insinua
com má-fé o governo, usar com a
Bolívia do mesmo remédio ilegal e
de força que ela usa conosco. Significa só defender o direito do Brasil
com todos os meios legais e, se isso
levar o mau vizinho a cortar o gás,
tomar já medidas preventivas para
atenuar o golpe. Entre elas:
1) Protestar contra todo ato e declaração violatórios de acordos e
ofensivos às relações normais entre
países. Indicar que a Petrobras só
foi à Bolívia instada pelos dois governos, que celebraram em 17/ 2/92
um acordo para a compra do gás,
seguido de contrato em 17/8/ 93 entre as duas empresas.
2) Lembrar que o contrato possui
a cláusula 15, que prevê processo civilizado para negociar aumento de
preço, que não foi seguido.
3) Exigir que a negociação se faça
sem ameaça ou ultimatos. Não havendo acordo, acionar a cláusula
17, pela qual os conflitos serão submetidos a corte de arbitragem em
Nova York, com multa para os violadores.
4) Elaborar plano de emergência
para preparar a indústria e os consumidores para eventual suspensão de gás e anunciá-lo para que os
bolivianos saibam que não aceitaremos chantagem.
Não precisamos ameaçar nem
agredir a Bolívia. Com firmeza e
equilíbrio, nosso direito acabará
por prevalecer. Se não já, no futuro.
Rubens Ricupero, 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
Texto Anterior: Áustria pede partida da seleção Próximo Texto: Lições Contemporâneas - Lições contemporâneas: Não ao câmbio maligno Índice
|