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São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Cutucar a onça

BENJAMIN STEINBRUCH

Há uma expressão popular brasileira que se aplica bem à atual pendenga entre Brasil e Estados Unidos na questão da Alca (Área de Livre Comércio das Américas): "Não se deve cutucar a onça com vara curta".
A posição oficial brasileira nessa discussão tem sido defendida de forma sensata pelo Itamaraty e pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Mas, por conta de algumas declarações isoladas, está se materializando a percepção de que o Brasil lidera uma rebelião antiamericana no continente.
Não se pode imaginar que o Brasil possa ficar fora da Alca, um monumental acordo que não diz respeito apenas ao comércio do continente americano mas também a investimentos futuros e a transferência de tecnologia. Virar as costas para a Alca significaria condenar o país ao isolamento comercial, tecnológico e financeiro nas Américas.
Também é ingênuo imaginar que a oposição do Brasil possa tornar inviável a criação da Alca, porque os americanos estão determinados a fazê-la de qualquer maneira. Trata-se de um acordo que envolve 800 milhões de pessoas, que vivem em 34 países do continente e produzem mais de US$ 11,5 trilhões por ano. A grande potência do bloco, a onça cutucada, são os Estados Unidos, responsáveis por 80% desse PIB. O Brasil tem apenas 5% da produção.
Mas aceitar a Alca não significa necessariamente aceitar de forma submissa os desejos americanos. Toda negociação se faz entre tapas e beijos, e o Itamaraty tem conhecida competência para conduzir esse processo com firmeza, como sempre fez. O próprio Amorim disse na semana passada que o Brasil "não quer encurralar nem ser encurralado" por nenhum país.
A Alca interessa ao Brasil se for delineada de modo a beneficiar o país. Isso é possível. Todas as nações das Américas querem tirar do bloco mais crescimento econômico, mais empregos e bem-estar para seus cidadãos. Obviamente, o Brasil também deve negociar duramente com os EUA e os demais parceiros tendo em vista esses objetivos. Deve brigar pelo acesso irrestrito dos produtos competitivos brasileiros nos grandes mercados americanos, sem taxações, cotas ou outra barreira. Além disso, tem de colocar entre os itens essenciais a questão dos subsídios agrícolas, ponto que os EUA não pretendem discutir no âmbito da Alca, mas que podem ser levados a fazê-lo.
O problema, portanto, não é a negociação firme dos interesses brasileiros no acordo, mas sim a idéia que está se ampliando de que o Brasil lidera um bloco que se opõe à Alca por ranço antiamericano. Isso pode colocar o país como alvo preferencial dos tiros comerciais, financeiros e diplomáticos americanos no continente. Um novo embaixador dos EUA deve ser nomeado nos próximos meses, para o lugar da simpática e amiga Donna Hrinak. Então, logo saberemos como anda o humor de Washington com o Brasil. A escalação de um republicano ultraconservador para o lugar de Donna será um péssimo sinal.
O Brasil precisa cuidar para que o exercício de soberania não seja confundido com confrontação. Exercício de soberania, por exemplo, é continuar a negociação de acordos com China e Índia, países que devem ser parceiros preferenciais e dos quais temos de nos aproximar ao máximo, estreitando laços políticos, comerciais e sociais. Soberania é dar atenção prioritária aos parceiros do Mercosul, buscar acordos de livre comércio com a União Européia e com a Rússia ou defender firmemente as posições brasileiras sobre comércio internacional na OMC (Organização Mundial do Comércio).
Em todos esses casos, há que colocar sempre em primeiro lugar o objetivo do crescimento econômico, da criação de empregos e do bem-estar dos brasileiros. A diplomacia brasileira precisa deixar bem claro que a discussão com os Estados Unidos é técnica. Não há viés ideológico nem se pretende criar um foco de rebelião antiamericana nas Américas. Cutucar a onça com vara curta só é um bom negócio quando se pode matá-la ao receber o contragolpe. Talvez não seja o caso do Brasil.


Benjamin Steinbruch, 50, empresário, é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.

E-mail - bvictoria@psi.com.br


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