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FMI
Ex-economista-chefe do Bird diz em artigo que "remédio" do FMI aprofundou crises da Ásia e da Rússia
O que eu aprendi com a crise mundial
JOSEPH STIGLITZ
A próxima reunião do FMI
(Fundo Monetário Internacional)
levará a Washington muitos dos
ativistas que ajudaram a arruinar
a reunião da Organização Mundial do Comércio no fim do ano
passado. Eles dirão que o FMI é
arrogante. Eles dirão que o FMI
não sabe ouvir os países em desenvolvimento que, em tese, deveria ajudar. Eles dirão que o FMI
é cheio de segredos e avesso a controles democráticos. Eles dirão
que os "remédios" econômicos
receitados pelo FMI frequentemente pioram as coisas -transformam desaquecimento em recessão, e recessão em depressão.
O argumento deles é bom. Fui
economista-chefe do Banco Mundial de 1996 até novembro passado, durante a mais grave crise
econômica global ocorrida em
meio século. Vi como o FMI, de
mãos dadas com o Departamento
do Tesouro norte-americano, respondeu a ela. E fiquei horrorizado.
A crise econômica global começou no dia 2 de julho de 1997, na
Tailândia. Os países do Leste
Asiático emergiam de três décadas milagrosas: a renda crescera,
as condições de saúde eram muito melhores, a pobreza caíra drasticamente. A alfabetização não era
apenas universal -em competições internacionais de matemática e ciências, muitos daqueles países batiam os Estados Unidos. Alguns não haviam experimentado
um único ano de recessão em 30
anos.
Mas as sementes da catástrofe já
haviam sido plantadas. No início
dos anos 90, os países do Leste
Asiático haviam liberalizado seus
mercados financeiros e de capital
-não porque precisassem atrair
mais recursos (as taxas de poupança já estavam em 30% ou
mais), mas por causa da pressão
internacional, incluindo alguma
pressão originária do Departamento do Tesouro norte-americano. Essas mudanças provocaram um fluxo de capital de curto
prazo -isto é, o capital que busca
o maior retorno possível no dia
seguinte, na semana seguinte ou
no mês seguinte, diferentemente
do investimento de longo prazo
que vai para fábricas, por exemplo. Na Tailândia, esse capital de
curto prazo funcionou como
combustível para um insustentável boom no setor imobiliário. E,
como as pessoas em todo o mundo (incluindo os Estados Unidos)
descobriram dolorosamente, toda bolha criada no mercado imobiliário acaba estourando, frequentemente com consequências
desastrosas. O capital que apareceu subitamente vai embora com
a mesma velocidade. E, quando
todo mundo fugir com o dinheiro
ao mesmo tempo, temos um problema econômico. Um grande
problema econômico.
A última rodada de crises financeiras havia ocorrido na América
Latina, nos anos 80, quando o inchaço dos déficit públicos e as políticas monetárias frouxas produziram inflação incontrolável. Ali,
o FMI corretamente impôs austeridade fiscal (equilíbrio orçamentário) e políticas monetárias mais
rígidas, exigindo que os governos
perseguissem tais políticas como
precondição para receber ajuda.
Assim, em 1997 o FMI decidiu
impor as mesmas exigências à
Tailândia. A austeridade, diziam
os chefes do Fundo, seria capaz de
restaurar a confiança na economia tailandesa. Quando a crise
atingiu outras nações do Leste
Asiático -e quando já havia evidências de que aquela política fracassara-, o FMI, sem piscar,
obrigou todas as nações doentes
que batiam à sua porta a ingerir o
mesmo remédio.
Acho que foi um erro. Em primeiro lugar, diversamente do que
acontecia nos países latino-americanos, os países do Leste Asiático já estavam administrando superávits orçamentários. Na Tailândia, o governo tinha um superávit de tal ordem que estava, na
realidade, matando a economia
de fome ao negar-lhe investimentos necessários em educação e infra-estrutura, ambos essenciais ao
crescimento econômico. E as nações do Leste Asiático já tinham
políticas monetárias rígidas: a inflação era baixa e estava em queda
(na Coréia do Sul, por exemplo, a
inflação limitava-se a respeitáveis
4%). O problema não estava nos
governos imprudentes, como os
da América Latina: o problema
era um setor privado imprudente
-todos aqueles banqueiros e tomadores de empréstimos, por
exemplo, que especulavam com a
"bolha" do mercado imobiliário.
Sob tais circunstâncias, eu temia
que as medidas de austeridade
não seriam capazes de reanimar
as economias do Leste Asiático
-antes, fariam-nas mergulhar
em recessão ou mesmo em depressão. Altas taxas de juros poderiam devastar empresas altamente endividadas do Leste Asiático, produzindo quebradeira e
inadimplência. A redução dos
gastos dos governos só faria a economia encolher ainda mais.
Comecei então a fazer pressão
por mudanças. Falei com Stanley
Fischer, renomado ex-professor
de economia no Massachusetts
Institute of Technology e ex-economista-chefe do Banco Mundial
que se tornara-se vice-diretor-gerente do FMI. Reuni-me com colegas economistas no Banco
Mundial que pudessem ter contatos ou influência no FMI, encorajando-os a fazer tudo o que pudessem para demover a burocracia do FMI.
A tarefa de convencer gente do
Banco Mundial sobre minha teoria foi fácil; mudar as cabeças do
FMI era virtualmente impossível.
Quando conversei com altos funcionários do FMI -explicando,
por exemplo, como as altas taxas
de juros poderiam aumentar as
falências, dificultando ainda mais
a recuperação da confiança nas
economias do Leste Asiático-
eles inicialmente resistiram. A seguir, sem conseguir oferecer um
contra-argumento eficiente, entrincheiraram-se em outra resposta: ah, se eu fosse capaz de entender a pressão vinda do Conselho Executivo do FMI -o organismo, indicado pelos ministros
de Finanças dos países industriais
avançados, que aprova todos os
empréstimos do FMI. O que eles
queriam dizer estava claro. A inclinação do Conselho Executivo
seria por medidas ainda mais
drásticas; aquelas pessoas com
quem eu falava exerciam, de fato,
uma influência moderadora.
Meus colegas diretores executivos
diziam que eles é que estavam
sendo pressionados. Era uma coisa de enlouquecer, não apenas
porque a inércia do FMI era tão
difícil de quebrar, mas porque,
com todas as coisas acontecendo
a portas fechadas, era impossível
saber quais eram os obstáculos
reais a modificar. O staff estava
pressionando os diretores executivos, ou os diretores executivos é
que pressionavam o staff? Ainda
hoje, não sei com certeza.
Naturalmente, todo mundo no
FMI me garantia que haveria flexibilidade: se suas políticas de fato
se mostrassem contraproducentes, empurrando as economias do
Leste Asiático para uma recessão
mais profunda do que seria necessário, elas seriam revertidas. Tive
um calafrio na espinha. Uma das
primeiras lições que os economistas ensinam a seus jovens alunos
na universidade é a importância
dos intervalos: leva de 12 a 18 meses até que uma modificação em
política monetária (elevação ou
redução das taxas de juros) mostre seu resultado pleno. Quando
eu trabalhei, na Casa Branca, como chefe do conselho de assessores econômicos, nós concentrávamos toda a nossa energia fazendo
previsões sobre os rumos que a
economia poderia tomar no futuro, justamente para saber que políticas deveriam ser recomendadas no presente. Brincar de pega-pega seria o máximo da loucura. E
era isso, exatamente, o que os funcionários do FMI estavam propondo.
Nada disso deveria me surpreender. O FMI gosta de resolver
seus negócios sem a intromissão
de estranhos que fazem muitas
perguntas. Em tese, o fundo apóia
as instituições democráticas dos
países que auxilia. Na prática, ele
enfraquece o processo democrático com sua imposição de políticas. Oficialmente, é claro, o FMI
não "impõe" nada. Ele "negocia"
as condições necessárias para
conceder ajuda. Mas, nessas negociações, todo o poder está concentrado em um lado só -o lado
do FMI-, e o Fundo raramente
dá tempo suficiente para a construção de um consenso ou mesmo para uma consulta ampla envolvendo os parlamentos ou a sociedade civil. Muitas vezes, o FMI
dispensa completamente a fantasia da transparência e negocia
pactos secretos.
Quando o FMI decide ajudar
um país, despacha para lá uma
"missão" de economistas. Esses
economistas em geral sabem pouco sobre o país em questão; muito
provavelmente, sua experiência
direta será restrita aos hotéis de
cinco estrelas e não se estenderá
às cidades. Eles trabalham duro,
desfiando números e números até
tarde da noite. Mas a tarefa deles é
impossível. Em poucos dias ou,
no máximo, semanas, precisam
desenvolver um programa coerente e sensível às necessidades
daquele país. Desnecessário dizer
que um pouquinho de econometria raramente fornece uma perspectiva clara do desenvolvimento
estratégico de uma nação inteira.
Pior ainda, o exercício econométrico nem sempre é muito bem
feito. Os modelos matemáticos
empregados pelo FMI são frequentemente falhos ou desatualizados. Os críticos acusam a instituição de adotar uma abordagem
"fábrica de salsichas" para lidar
com a economia, e eles estão certos. Sabe-se que as missões elaboram rascunhos de seus relatórios
antes das visitas. Já ouvi falar de
um incidente infeliz em que
membros da missão copiaram
grandes trechos do texto do relatório de um país e transferiram-nos integralmente para outro. Teriam conseguido ocultar a proeza,
não fosse o fato de que o sistema
de busca-e-troca do processador
de texto não funcionou direito,
deixando o nome do país original
em alguns trechos do segundo relatório. Ops.
Não é justo dizer que os economistas do FMI não se importam
com os cidadãos das nações em
desenvolvimento. Mas os velhos
senhores que tocam o Fundo -e
eles são majoritariamente velhos
senhores- agem como se estivessem carregando "o fardo do
homem branco" de Rudyard Kipling. Os especialistas do FMI
acreditam que são mais brilhantes, que têm melhor formação e
que são menos politicamente motivados do que os economistas
dos países que visitam. Na realidade, os líderes econômicos daqueles países são muito bons
-em muitos casos, são mais brilhantes ou têm melhor formação
do que o staff do FMI, que frequentemente consiste de estudantes de terceira categoria de
universidades de primeira categoria. (Podem acreditar em mim: lecionei na Universidade Oxford,
no MIT, em Stanford, Yale e Princeton, e o FMI quase nunca conseguia recrutar os nossos melhores estudantes). No verão passado, dei um seminário, na China,
sobre políticas de competição no
setor de telecomunicações. Pelo
menos três economistas chineses
que estavam na platéia formularam questões tão sofisticadas
quanto as melhores mentes ocidentais teriam sido capazes de fazer.
Á medida que o tempo passava,
fui ficando cada vez mais frustrado (alguém poderia imaginar que,
como o Banco Mundial contribuía para os pacotes de ajuda, literalmente, com bilhões de dólares,
sua voz devia ser ouvida. Mas era
ignorada, quase tão ignorada como as vozes das pessoas dos países afetados). O FMI alardeava
que tudo o que estava pedindo
aos países do Leste Asiático era
que equilibrassem seus orçamentos em época de recessão. Tudo?
A administração Clinton não estava justamente travando uma
batalha de morte no Congresso
para rechaçar uma emenda sobre
controle do Orçamento em seu
próprio país? E a administração
não argumentava em essência
que, em face de uma recessão, um
pouco de gasto governamental
pode ser necessário? Isto é o que
eu e a maioria dos economistas
ensinamos aos estudantes universitários ao longo dos últimos 60
anos. Falando francamente, se eu
perguntasse em uma prova "Qual
deve ser a postura fiscal da Tailândia", e se um aluno meu escrevesse a resposta dada pelo FMI, ele tiraria zero.
À medida que a crise se difundia
e chegava à Indonésia, minha
preocupação aumentava. Novas
pesquisas do Banco Mundial demonstravam que a recessão em
um país com tamanhas divisões
étnicas poderia causar toda espécie de tumulto, político e social.
Assim, no final de 1997, em uma
reunião de ministros das Finanças e presidentes de bancos centrais em Kuala Lumpur, divulguei
uma declaração cuidadosamente
preparada e aprovada pelo Banco
Mundial, na qual sugeria que políticas monetárias e fiscais demasiadamente severas poderiam
causar inquietação política e social na Indonésia. Uma vez mais,
o FMI manteve-se firme. O diretor-executivo do Fundo, Michel
Camdessus, repetiu lá o que vinha
dizendo em público: que o Leste
Asiático tinha simplesmente de
suportar a pressão, como o México fizera. Ele prosseguiu ressaltando que, apesar de todo o sofrimento de curto prazo que experimentara, o México emergira mais
forte de sua crise.
"Burocrata fala língua imcompreensível"
Mas essa era uma analogia absurda. O México não tinha se recuperado porque o FMI o forçara
a revigorar seu debilitado sistema
financeiro -que continuou fraco
por anos depois da crise, aliás. A
recuperação mexicana deveu-se a
um surto de exportações aos Estados Unidos, decorrente do
"boom" econômico dos Estados
Unidos e do Nafta. Em contraste,
o principal parceiro comercial da
Indonésia era o Japão -que estava então (e continua) afundado
em recessão. Além disso, a Indonésia passava por uma situação
muito mais explosiva, em termos
sociais e políticos, do que o México, e sua história de conflitos étnicos era muito mais grave. E novos
conflitos produziriam uma fuga
em massa de capitais (facilitada
pelo relaxamento dos controles
cambiais encorajado pelo FMI).
Mas nenhum desses argumentos fez diferença. O FMI foi em
frente, exigindo reduções nos gastos do governo. Assim, subsídios
a necessidades básicas como os
alimentos e o combustível foram
eliminados no momento mesmo
em que a adoção de políticas econômicas duras tornavam os subsídios mais desesperadamente
necessários do que nunca.
Por volta de janeiro de 1998, as
coisas tinham piorado tanto que o
vice-presidente do Banco Mundial para o Leste Asiático, Jean-Michel Severino, invocou a temida palavra "recessão", bem como
a ainda mais temida "depressão",
para descrever a calamidade econômica que vinha devastando a
Ásia. Lawrence Summers, então
subsecretário do Tesouro norte-americano, criticou Severino por
fazer as coisas parecerem piores
do que eram de fato -mas que
outra maneira havia para descrever o que estava acontecendo? A
produção, em alguns dos países
atingidos, caíra 16% ou mais. Metade das empresas da Indonésia
estava tecnicamente falida, ou
perto disso, e como resultado o
país não podia sequer tirar vantagem das oportunidades de exportação que a queda no câmbio oferecia. O desemprego disparou,
chegando a decuplicar, e os salários reais despencaram -e isso
em países sem redes de seguro social eficazes. Não só o FMI não estava restaurando a confiança econômica no Leste Asiático como
estava, na verdade, solapando o
tecido social da região. E depois,
no segundo e no terceiro trimestres de 1998, a crise se espalhou
para além do Leste Asiático e atingiu o mais explosivo de todos os
países: a Rússia.
A calamidade na Rússia teve características centrais em comum
com a calamidade no Leste Asiático -e uma das mais importantes
foi o papel exercido pelas políticas
ditadas pelo FMI e o Tesouro norte-americano. Na Rússia, porém,
esse papel começou a ser exercido
muito antes. Após a queda do
Muro de Berlim, surgiram duas linhas diferentes de pensamento
sobre a transição russa para uma
economia de mercado.
Uma delas, na qual eu me enquadrava, era composta de um
misto de especialistas na região,
ganhadores do Prêmio Nobel como Kenneth Arrow e outros. Esse
grupo enfatizava a importância
da infra-estrutura institucional de
uma economia de mercado
-desde as estruturas legais que
permitem a implementação de
contratos até as estruturas de regulamentação que fazem um sistema financeiro funcionar. Tanto
Arrow quanto eu tínhamos feito
parte de um grupo da Academia
Nacional de Ciências que, uma
década antes, discutira com os
chineses a estratégia de transição
na China. Destacáramos a importância de fomentar a concorrência -e não apenas de privatizar
as estatais- e éramos favoráveis
a uma transição mais gradativa
para a economia de mercado
(embora concordássemos que de
vez quando talvez se tornassem
necessárias medidas contundentes para combater a hiperinflação).
O segundo grupo era composto
em grande medida de macroeconomistas, cuja fé no mercado não
se fazia acompanhar de uma
apreciação das sutilezas dos elementos que formam sua base
-ou seja, as condições necessárias para que o mercado funcione
de maneira efetiva. Esses economistas, em sua maioria, sabiam
pouco sobre a história ou os detalhes da economia russa, e achavam que esses conhecimentos
não lhes eram necessários. O
grande ponto forte -e também o
maior ponto fraco- das doutrinas econômicas em que se baseavam é que essas doutrinas são
-ou se acredita que sejam-universais. Instituições, história ou
até mesmo a distribuição da renda simplesmente não têm importância. Os bons economistas conhecem as verdades universais e
podem olhar mais além dos fatos
e detalhes que obscurecem essas
verdades. E a verdade universal é
que a terapia de choque funciona
para os países em processo de
transição para a economia de
mercado: quanto mais forte o remédio (e mais dolorosa a reação),
mais rápida será a recuperação.
Pelo menos é isso que afirma esse
argumento.
Infelizmente para a Rússia, a segunda escola venceu a discussão
no Departamento do Tesouro e
no FMI. Ou, para ser mais exato, o
Departamento do Tesouro e o
FMI se asseguraram de que não
houvesse debate aberto e, a seguir, avançaram cegamente pelo
segundo caminho. Aqueles que se
opunham a esse caminho ou não
eram consultados ou o eram por
pouco tempo. No conselho de assessores econômicos, por exemplo, havia um economista brilhante, Peter Orszag, que já atuara
como assessor muito próximo do
governo russo e trabalhara com
muitos dos jovens economistas
que acabaram por assumir cargos
de influência na Rússia. Orszag
era exatamente o tipo de pessoa
cujos conhecimentos especializados eram necessários ao Tesouro
e ao FMI. Entretanto, possivelmente pelo fato de ele saber demais, quase nunca o consultaram.
O que aconteceu a seguir é do
conhecimento geral. Nas eleições
de dezembro de 1993 os eleitores
russos impuseram um revés
enorme aos reformistas, revés do
qual eles ainda não se recuperaram realmente. Strobe Talbott, na
época encarregado dos aspectos
não-econômicos da política americana em relação à Rússia, admitiu que a Rússia recebera "choque
demais e terapia de menos". E
aquele choque todo não ajudara a
Rússia em nada a avançar em direção a uma economia de mercado real. As privatizações aceleradas que o FMI e o Departamento
do Tesouro pressionaram a Rússia a empreender permitiram que
um pequeno grupo de oligarcas
conquistasse o controle dos ativos
estatais. Sim, o FMI e o Tesouro
reajustaram os incentivos econômicos da Rússia -mas no sentido errado. Ao deixar de prestar a
atenção necessária à infra-estrutura institucional que teria permitido o florescimento da economia
de mercado e ao facilitar o fluxo
de capitais para dentro e para fora
da Rússia, o FMI e o Tesouro lançaram as bases para a pilhagem
iniciada pelos oligarcas. Ao mesmo tempo em que faltava para o
governo o dinheiro para pagar as
aposentadorias dos pensionistas,
os oligarcas pilhavam o dinheiro
nacional e vendiam os mais preciosos recursos nacionais, enviando o dinheiro resultante para contas bancárias na Suíça e no Chipre.
Os Estados Unidos foram implicados nesse desenrolar de fatos lamentáveis. Em meados de 1998,
Summers, que pouco depois seria
indicado sucessor de Robert Rubin como secretário do Tesouro,
chegou ao ponto de fazer questão
de aparecer publicamente ao lado
de Anatoly Chubais, o principal
arquiteto da privatização russa.
Com isso, os EUA davam a impressão de estar se alinhando com
as próprias forças que estavam reduzindo a população russa à miséria. Não surpreende que o sentimento antiamericano tenha se espalhado como um incêndio em
mata seca.
Num primeiro momento, apesar da admissão feito por Talbott,
os verdadeiros crentes no Tesouro e no FMI continuaram a insistir que o problema não era causado por terapia demais, mas por
choque de menos. Mas a implosão da economia russa prosseguiu ao longo de meados da década de 90. A produção caiu pela
metade. Enquanto apenas 2% da
população vivia em pobreza mesmo no final do triste período soviético, as supostas reformas viram o índice de pobreza subir para quase 50%, com mais de metade das crianças russas vivendo
abaixo da linha de pobreza. Foi
apenas recentemente que o FMI e
o Tesouro admitiram que a importância da terapia foi subestimada -embora agora afirmem
que era isso que diziam desde o
começo.
A situação da Rússia hoje continua desesperadora. Os altos preços do petróleo e a longamente resistida desvalorização do rublo
ajudaram o país a se recolocar
parcialmente em pé. Mas os padrões de vida ainda estão muito
inferiores ao que eram no início
da transição. A desigualdade de
renda é enorme, e a maioria dos
russos, amargurada pela experiência, já perdeu a confiança no
mercado livre. Uma queda significativa nos preços petrolíferos
quase certamente inverteria os
modestos avanços conseguidos
até agora.
O Leste Asiático está em situação melhor, embora também enfrente problemas. Quase 40% dos
empréstimos da Tailândia continuam sem serem pagos, e a Indonésia permanece atolada em recessão profunda. Os índices de
desemprego permanecem muito
mais altos do que eram antes da
crise, mesmo no país que apresenta o melhor desempenho da
região, a Coréia do Sul. Os defensores do FMI querem fazer crer
que o fim da recessão é testemunha da eficácia das políticas do
Fundo. Bobagem. Toda recessão
acaba algum dia. Tudo que o FMI
fez foi agravar as recessões asiáticas, tornando-as mais profundas,
mais prolongadas e mais difíceis.
De fato, a Tailândia, o país que seguiu mais de perto as prescrições
do FMI, vem apresentando desempenho pior do que a Malásia e
a Coréia do Sul, que seguiram rumos mais independentes.
Já me perguntaram muitas vezes como pessoas inteligentes
-até mesmo brilhantes- podem ter criado políticas tão ruins.
Uma explicação é que essas pessoas inteligentes não faziam uma
disciplina econômica inteligente.
Repetidas vezes fiquei estarrecido
ao constatar até que ponto eram
desatualizados e desafinados com
a realidade os modelos empregados pelos economistas de Washington. Por exemplo, fenômenos microeconômicos como a falência e o medo de moratória estavam na base da crise no Leste
Asiático. Mas os modelos macroeconômicos usados para analisar essas crises normalmente
não tinham suas raízes em microfundamentos, de modo que não
levavam em conta as falências.
Mas a disciplina econômica falha era apenas sintoma do verdadeiro problema: a falta de transparência. Pessoas inteligentes
apresentam tendência maior a fazer coisas estúpidas quando se
isolam das críticas e dos conselhos vindos de fora. Se há uma
coisa que aprendi, trabalhando
com o governo, é que a abertura é
mais essencial nos campos em
que o conhecimento especializado é mais necessário. Se o FMI e o
Tesouro tivessem se aberto mais
ao exame e à critica de fora, seus
erros talvez tivessem vindo à tona
muito antes e com muito mais
clareza. Os críticos da direita, como Martin Feldstein, presidente
do conselho de assessores econômicos de Reagan, e George Shultz,
secretário de Estado de Reagan, se
uniram a Jeff Sachs, Paul Krugman e a mim na condenação das
políticas adotadas. Mas, com o
FMI insistindo que suas políticas
estavam acima de qualquer crítica
-e na ausência de qualquer estrutura institucional que pudesse
obrigá-lo a prestar atenção-,
nossas críticas de pouco serviram.
Mais assustador ainda é o fato de
que os críticos internos, especialmente aqueles que deviam explicações diretas à população em
função das regras democráticas,
não foram informados dos fatos.
O Departamento do Tesouro é
tão arrogante em relação a suas
análises e prescrições econômicas
que muitas vezes mantém controle rígido -rígido em demasia-
sobre o que até mesmo o presidente pode ver.
Uma discussão aberta teria levantado questões profundas que
ainda hoje merecem muito pouca
atenção por parte da imprensa
americana. Até que ponto o FMI e
o Departamento do Tesouro impuseram políticas que, na realidade, contribuíram para intensificar
a volatilidade econômica global?
(Em 1993 o Tesouro pressionou
pela liberalização na Coréia, passando por cima da oposição do
conselho de assessores econômicos. O Tesouro venceu a batalha
interna na Casa Branca, mas a Coréia e o mundo pagaram um preço alto por sua vitória.) Será que
algumas das críticas ásperas feitas
pelo FMI em relação ao Leste
Asiático tinham por objetivo desviar a atenção de suas próprias
culpas? E, o que é mais importante, será que os EUA -e o FMI-
impõem políticas porque nós, ou
eles, acreditávamos que essas políticas ajudariam o Leste Asiático,
ou porque acreditávamos que
elas beneficiariam interesses financeiros nos EUA e no mundo
industrial adiantado? E, se acreditávamos que as políticas que ditávamos estivessem ajudando a
Ásia, onde estavam as evidências
disso? Na condição de participante nessas discussões, tive acesso às
evidências. Elas não existiam.
Desde o fim da Guerra Fria, as
pessoas encarregadas de levar o
evangelho do livre mercado até os
mais longínquos cantos do mundo ganharam um poder tremendo. Esses economistas, burocratas
e funcionários agem em nome
dos Estados Unidos e dos outros
países industriais avançados, mas
falam uma língua que poucos cidadãos medianos compreendem
e que poucos dos responsáveis
pelo traçado das políticas se dão
ao trabalho de traduzir. Hoje em
dia a política econômica talvez
constitua a parte mais importante
da interação dos EUA com o resto
do mundo. Entretanto, a cultura
da política econômica internacional na mais poderosa democracia
do mundo não é democrática.
É isso o que tentarão dizer os
manifestantes que vão gritar às
portas do FMI nos próximos dias.
É claro que a rua não é o melhor
lugar para discutir essas questões
altamente complexas. Alguns dos
manifestantes estão tão pouco interessados num debate aberto
quanto os representantes do FMI.
E nem tudo que os manifestantes
disserem será correto. Mas, se as
pessoas às quais confiamos a gestão da economia mundial -no
FMI e no Departamento do Tesouro- não iniciarem um diálogo e não derem ouvidos a essas
críticas, as coisas vão continuar a
dar muito, muito errado. Não é a
primeira vez que vejo isso acontecer.
Joseph Stiglitz é professor de economia (licenciado) na Universidade Stanford e membro sênior do Instituto Brookings. Foi economista-chefe e vice-presidente do Banco
Mundial. Participou do conselho de assessores econômicos da Presidência dos EUA de
1993 a 1997.
Este artigo foi publicado originalmente pela
"The New Republic"
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