São Paulo, sábado, 15 de abril de 2000


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FMI
Ex-economista-chefe do Bird diz em artigo que "remédio" do FMI aprofundou crises da Ásia e da Rússia
O que eu aprendi com a crise mundial

JOSEPH STIGLITZ

A próxima reunião do FMI (Fundo Monetário Internacional) levará a Washington muitos dos ativistas que ajudaram a arruinar a reunião da Organização Mundial do Comércio no fim do ano passado. Eles dirão que o FMI é arrogante. Eles dirão que o FMI não sabe ouvir os países em desenvolvimento que, em tese, deveria ajudar. Eles dirão que o FMI é cheio de segredos e avesso a controles democráticos. Eles dirão que os "remédios" econômicos receitados pelo FMI frequentemente pioram as coisas -transformam desaquecimento em recessão, e recessão em depressão.
O argumento deles é bom. Fui economista-chefe do Banco Mundial de 1996 até novembro passado, durante a mais grave crise econômica global ocorrida em meio século. Vi como o FMI, de mãos dadas com o Departamento do Tesouro norte-americano, respondeu a ela. E fiquei horrorizado.
A crise econômica global começou no dia 2 de julho de 1997, na Tailândia. Os países do Leste Asiático emergiam de três décadas milagrosas: a renda crescera, as condições de saúde eram muito melhores, a pobreza caíra drasticamente. A alfabetização não era apenas universal -em competições internacionais de matemática e ciências, muitos daqueles países batiam os Estados Unidos. Alguns não haviam experimentado um único ano de recessão em 30 anos.
Mas as sementes da catástrofe já haviam sido plantadas. No início dos anos 90, os países do Leste Asiático haviam liberalizado seus mercados financeiros e de capital -não porque precisassem atrair mais recursos (as taxas de poupança já estavam em 30% ou mais), mas por causa da pressão internacional, incluindo alguma pressão originária do Departamento do Tesouro norte-americano. Essas mudanças provocaram um fluxo de capital de curto prazo -isto é, o capital que busca o maior retorno possível no dia seguinte, na semana seguinte ou no mês seguinte, diferentemente do investimento de longo prazo que vai para fábricas, por exemplo. Na Tailândia, esse capital de curto prazo funcionou como combustível para um insustentável boom no setor imobiliário. E, como as pessoas em todo o mundo (incluindo os Estados Unidos) descobriram dolorosamente, toda bolha criada no mercado imobiliário acaba estourando, frequentemente com consequências desastrosas. O capital que apareceu subitamente vai embora com a mesma velocidade. E, quando todo mundo fugir com o dinheiro ao mesmo tempo, temos um problema econômico. Um grande problema econômico.
A última rodada de crises financeiras havia ocorrido na América Latina, nos anos 80, quando o inchaço dos déficit públicos e as políticas monetárias frouxas produziram inflação incontrolável. Ali, o FMI corretamente impôs austeridade fiscal (equilíbrio orçamentário) e políticas monetárias mais rígidas, exigindo que os governos perseguissem tais políticas como precondição para receber ajuda.
Assim, em 1997 o FMI decidiu impor as mesmas exigências à Tailândia. A austeridade, diziam os chefes do Fundo, seria capaz de restaurar a confiança na economia tailandesa. Quando a crise atingiu outras nações do Leste Asiático -e quando já havia evidências de que aquela política fracassara-, o FMI, sem piscar, obrigou todas as nações doentes que batiam à sua porta a ingerir o mesmo remédio.
Acho que foi um erro. Em primeiro lugar, diversamente do que acontecia nos países latino-americanos, os países do Leste Asiático já estavam administrando superávits orçamentários. Na Tailândia, o governo tinha um superávit de tal ordem que estava, na realidade, matando a economia de fome ao negar-lhe investimentos necessários em educação e infra-estrutura, ambos essenciais ao crescimento econômico. E as nações do Leste Asiático já tinham políticas monetárias rígidas: a inflação era baixa e estava em queda (na Coréia do Sul, por exemplo, a inflação limitava-se a respeitáveis 4%). O problema não estava nos governos imprudentes, como os da América Latina: o problema era um setor privado imprudente -todos aqueles banqueiros e tomadores de empréstimos, por exemplo, que especulavam com a "bolha" do mercado imobiliário.
Sob tais circunstâncias, eu temia que as medidas de austeridade não seriam capazes de reanimar as economias do Leste Asiático -antes, fariam-nas mergulhar em recessão ou mesmo em depressão. Altas taxas de juros poderiam devastar empresas altamente endividadas do Leste Asiático, produzindo quebradeira e inadimplência. A redução dos gastos dos governos só faria a economia encolher ainda mais.
Comecei então a fazer pressão por mudanças. Falei com Stanley Fischer, renomado ex-professor de economia no Massachusetts Institute of Technology e ex-economista-chefe do Banco Mundial que se tornara-se vice-diretor-gerente do FMI. Reuni-me com colegas economistas no Banco Mundial que pudessem ter contatos ou influência no FMI, encorajando-os a fazer tudo o que pudessem para demover a burocracia do FMI.
A tarefa de convencer gente do Banco Mundial sobre minha teoria foi fácil; mudar as cabeças do FMI era virtualmente impossível. Quando conversei com altos funcionários do FMI -explicando, por exemplo, como as altas taxas de juros poderiam aumentar as falências, dificultando ainda mais a recuperação da confiança nas economias do Leste Asiático- eles inicialmente resistiram. A seguir, sem conseguir oferecer um contra-argumento eficiente, entrincheiraram-se em outra resposta: ah, se eu fosse capaz de entender a pressão vinda do Conselho Executivo do FMI -o organismo, indicado pelos ministros de Finanças dos países industriais avançados, que aprova todos os empréstimos do FMI. O que eles queriam dizer estava claro. A inclinação do Conselho Executivo seria por medidas ainda mais drásticas; aquelas pessoas com quem eu falava exerciam, de fato, uma influência moderadora. Meus colegas diretores executivos diziam que eles é que estavam sendo pressionados. Era uma coisa de enlouquecer, não apenas porque a inércia do FMI era tão difícil de quebrar, mas porque, com todas as coisas acontecendo a portas fechadas, era impossível saber quais eram os obstáculos reais a modificar. O staff estava pressionando os diretores executivos, ou os diretores executivos é que pressionavam o staff? Ainda hoje, não sei com certeza.
Naturalmente, todo mundo no FMI me garantia que haveria flexibilidade: se suas políticas de fato se mostrassem contraproducentes, empurrando as economias do Leste Asiático para uma recessão mais profunda do que seria necessário, elas seriam revertidas. Tive um calafrio na espinha. Uma das primeiras lições que os economistas ensinam a seus jovens alunos na universidade é a importância dos intervalos: leva de 12 a 18 meses até que uma modificação em política monetária (elevação ou redução das taxas de juros) mostre seu resultado pleno. Quando eu trabalhei, na Casa Branca, como chefe do conselho de assessores econômicos, nós concentrávamos toda a nossa energia fazendo previsões sobre os rumos que a economia poderia tomar no futuro, justamente para saber que políticas deveriam ser recomendadas no presente. Brincar de pega-pega seria o máximo da loucura. E era isso, exatamente, o que os funcionários do FMI estavam propondo.
Nada disso deveria me surpreender. O FMI gosta de resolver seus negócios sem a intromissão de estranhos que fazem muitas perguntas. Em tese, o fundo apóia as instituições democráticas dos países que auxilia. Na prática, ele enfraquece o processo democrático com sua imposição de políticas. Oficialmente, é claro, o FMI não "impõe" nada. Ele "negocia" as condições necessárias para conceder ajuda. Mas, nessas negociações, todo o poder está concentrado em um lado só -o lado do FMI-, e o Fundo raramente dá tempo suficiente para a construção de um consenso ou mesmo para uma consulta ampla envolvendo os parlamentos ou a sociedade civil. Muitas vezes, o FMI dispensa completamente a fantasia da transparência e negocia pactos secretos.
Quando o FMI decide ajudar um país, despacha para lá uma "missão" de economistas. Esses economistas em geral sabem pouco sobre o país em questão; muito provavelmente, sua experiência direta será restrita aos hotéis de cinco estrelas e não se estenderá às cidades. Eles trabalham duro, desfiando números e números até tarde da noite. Mas a tarefa deles é impossível. Em poucos dias ou, no máximo, semanas, precisam desenvolver um programa coerente e sensível às necessidades daquele país. Desnecessário dizer que um pouquinho de econometria raramente fornece uma perspectiva clara do desenvolvimento estratégico de uma nação inteira. Pior ainda, o exercício econométrico nem sempre é muito bem feito. Os modelos matemáticos empregados pelo FMI são frequentemente falhos ou desatualizados. Os críticos acusam a instituição de adotar uma abordagem "fábrica de salsichas" para lidar com a economia, e eles estão certos. Sabe-se que as missões elaboram rascunhos de seus relatórios antes das visitas. Já ouvi falar de um incidente infeliz em que membros da missão copiaram grandes trechos do texto do relatório de um país e transferiram-nos integralmente para outro. Teriam conseguido ocultar a proeza, não fosse o fato de que o sistema de busca-e-troca do processador de texto não funcionou direito, deixando o nome do país original em alguns trechos do segundo relatório. Ops.
Não é justo dizer que os economistas do FMI não se importam com os cidadãos das nações em desenvolvimento. Mas os velhos senhores que tocam o Fundo -e eles são majoritariamente velhos senhores- agem como se estivessem carregando "o fardo do homem branco" de Rudyard Kipling. Os especialistas do FMI acreditam que são mais brilhantes, que têm melhor formação e que são menos politicamente motivados do que os economistas dos países que visitam. Na realidade, os líderes econômicos daqueles países são muito bons -em muitos casos, são mais brilhantes ou têm melhor formação do que o staff do FMI, que frequentemente consiste de estudantes de terceira categoria de universidades de primeira categoria. (Podem acreditar em mim: lecionei na Universidade Oxford, no MIT, em Stanford, Yale e Princeton, e o FMI quase nunca conseguia recrutar os nossos melhores estudantes). No verão passado, dei um seminário, na China, sobre políticas de competição no setor de telecomunicações. Pelo menos três economistas chineses que estavam na platéia formularam questões tão sofisticadas quanto as melhores mentes ocidentais teriam sido capazes de fazer.
Á medida que o tempo passava, fui ficando cada vez mais frustrado (alguém poderia imaginar que, como o Banco Mundial contribuía para os pacotes de ajuda, literalmente, com bilhões de dólares, sua voz devia ser ouvida. Mas era ignorada, quase tão ignorada como as vozes das pessoas dos países afetados). O FMI alardeava que tudo o que estava pedindo aos países do Leste Asiático era que equilibrassem seus orçamentos em época de recessão. Tudo? A administração Clinton não estava justamente travando uma batalha de morte no Congresso para rechaçar uma emenda sobre controle do Orçamento em seu próprio país? E a administração não argumentava em essência que, em face de uma recessão, um pouco de gasto governamental pode ser necessário? Isto é o que eu e a maioria dos economistas ensinamos aos estudantes universitários ao longo dos últimos 60 anos. Falando francamente, se eu perguntasse em uma prova "Qual deve ser a postura fiscal da Tailândia", e se um aluno meu escrevesse a resposta dada pelo FMI, ele tiraria zero.
À medida que a crise se difundia e chegava à Indonésia, minha preocupação aumentava. Novas pesquisas do Banco Mundial demonstravam que a recessão em um país com tamanhas divisões étnicas poderia causar toda espécie de tumulto, político e social. Assim, no final de 1997, em uma reunião de ministros das Finanças e presidentes de bancos centrais em Kuala Lumpur, divulguei uma declaração cuidadosamente preparada e aprovada pelo Banco Mundial, na qual sugeria que políticas monetárias e fiscais demasiadamente severas poderiam causar inquietação política e social na Indonésia. Uma vez mais, o FMI manteve-se firme. O diretor-executivo do Fundo, Michel Camdessus, repetiu lá o que vinha dizendo em público: que o Leste Asiático tinha simplesmente de suportar a pressão, como o México fizera. Ele prosseguiu ressaltando que, apesar de todo o sofrimento de curto prazo que experimentara, o México emergira mais forte de sua crise.

"Burocrata fala língua imcompreensível"

Mas essa era uma analogia absurda. O México não tinha se recuperado porque o FMI o forçara a revigorar seu debilitado sistema financeiro -que continuou fraco por anos depois da crise, aliás. A recuperação mexicana deveu-se a um surto de exportações aos Estados Unidos, decorrente do "boom" econômico dos Estados Unidos e do Nafta. Em contraste, o principal parceiro comercial da Indonésia era o Japão -que estava então (e continua) afundado em recessão. Além disso, a Indonésia passava por uma situação muito mais explosiva, em termos sociais e políticos, do que o México, e sua história de conflitos étnicos era muito mais grave. E novos conflitos produziriam uma fuga em massa de capitais (facilitada pelo relaxamento dos controles cambiais encorajado pelo FMI).
Mas nenhum desses argumentos fez diferença. O FMI foi em frente, exigindo reduções nos gastos do governo. Assim, subsídios a necessidades básicas como os alimentos e o combustível foram eliminados no momento mesmo em que a adoção de políticas econômicas duras tornavam os subsídios mais desesperadamente necessários do que nunca.
Por volta de janeiro de 1998, as coisas tinham piorado tanto que o vice-presidente do Banco Mundial para o Leste Asiático, Jean-Michel Severino, invocou a temida palavra "recessão", bem como a ainda mais temida "depressão", para descrever a calamidade econômica que vinha devastando a Ásia. Lawrence Summers, então subsecretário do Tesouro norte-americano, criticou Severino por fazer as coisas parecerem piores do que eram de fato -mas que outra maneira havia para descrever o que estava acontecendo? A produção, em alguns dos países atingidos, caíra 16% ou mais. Metade das empresas da Indonésia estava tecnicamente falida, ou perto disso, e como resultado o país não podia sequer tirar vantagem das oportunidades de exportação que a queda no câmbio oferecia. O desemprego disparou, chegando a decuplicar, e os salários reais despencaram -e isso em países sem redes de seguro social eficazes. Não só o FMI não estava restaurando a confiança econômica no Leste Asiático como estava, na verdade, solapando o tecido social da região. E depois, no segundo e no terceiro trimestres de 1998, a crise se espalhou para além do Leste Asiático e atingiu o mais explosivo de todos os países: a Rússia.
A calamidade na Rússia teve características centrais em comum com a calamidade no Leste Asiático -e uma das mais importantes foi o papel exercido pelas políticas ditadas pelo FMI e o Tesouro norte-americano. Na Rússia, porém, esse papel começou a ser exercido muito antes. Após a queda do Muro de Berlim, surgiram duas linhas diferentes de pensamento sobre a transição russa para uma economia de mercado.
Uma delas, na qual eu me enquadrava, era composta de um misto de especialistas na região, ganhadores do Prêmio Nobel como Kenneth Arrow e outros. Esse grupo enfatizava a importância da infra-estrutura institucional de uma economia de mercado -desde as estruturas legais que permitem a implementação de contratos até as estruturas de regulamentação que fazem um sistema financeiro funcionar. Tanto Arrow quanto eu tínhamos feito parte de um grupo da Academia Nacional de Ciências que, uma década antes, discutira com os chineses a estratégia de transição na China. Destacáramos a importância de fomentar a concorrência -e não apenas de privatizar as estatais- e éramos favoráveis a uma transição mais gradativa para a economia de mercado (embora concordássemos que de vez quando talvez se tornassem necessárias medidas contundentes para combater a hiperinflação).
O segundo grupo era composto em grande medida de macroeconomistas, cuja fé no mercado não se fazia acompanhar de uma apreciação das sutilezas dos elementos que formam sua base -ou seja, as condições necessárias para que o mercado funcione de maneira efetiva. Esses economistas, em sua maioria, sabiam pouco sobre a história ou os detalhes da economia russa, e achavam que esses conhecimentos não lhes eram necessários. O grande ponto forte -e também o maior ponto fraco- das doutrinas econômicas em que se baseavam é que essas doutrinas são -ou se acredita que sejam-universais. Instituições, história ou até mesmo a distribuição da renda simplesmente não têm importância. Os bons economistas conhecem as verdades universais e podem olhar mais além dos fatos e detalhes que obscurecem essas verdades. E a verdade universal é que a terapia de choque funciona para os países em processo de transição para a economia de mercado: quanto mais forte o remédio (e mais dolorosa a reação), mais rápida será a recuperação. Pelo menos é isso que afirma esse argumento.
Infelizmente para a Rússia, a segunda escola venceu a discussão no Departamento do Tesouro e no FMI. Ou, para ser mais exato, o Departamento do Tesouro e o FMI se asseguraram de que não houvesse debate aberto e, a seguir, avançaram cegamente pelo segundo caminho. Aqueles que se opunham a esse caminho ou não eram consultados ou o eram por pouco tempo. No conselho de assessores econômicos, por exemplo, havia um economista brilhante, Peter Orszag, que já atuara como assessor muito próximo do governo russo e trabalhara com muitos dos jovens economistas que acabaram por assumir cargos de influência na Rússia. Orszag era exatamente o tipo de pessoa cujos conhecimentos especializados eram necessários ao Tesouro e ao FMI. Entretanto, possivelmente pelo fato de ele saber demais, quase nunca o consultaram.
O que aconteceu a seguir é do conhecimento geral. Nas eleições de dezembro de 1993 os eleitores russos impuseram um revés enorme aos reformistas, revés do qual eles ainda não se recuperaram realmente. Strobe Talbott, na época encarregado dos aspectos não-econômicos da política americana em relação à Rússia, admitiu que a Rússia recebera "choque demais e terapia de menos". E aquele choque todo não ajudara a Rússia em nada a avançar em direção a uma economia de mercado real. As privatizações aceleradas que o FMI e o Departamento do Tesouro pressionaram a Rússia a empreender permitiram que um pequeno grupo de oligarcas conquistasse o controle dos ativos estatais. Sim, o FMI e o Tesouro reajustaram os incentivos econômicos da Rússia -mas no sentido errado. Ao deixar de prestar a atenção necessária à infra-estrutura institucional que teria permitido o florescimento da economia de mercado e ao facilitar o fluxo de capitais para dentro e para fora da Rússia, o FMI e o Tesouro lançaram as bases para a pilhagem iniciada pelos oligarcas. Ao mesmo tempo em que faltava para o governo o dinheiro para pagar as aposentadorias dos pensionistas, os oligarcas pilhavam o dinheiro nacional e vendiam os mais preciosos recursos nacionais, enviando o dinheiro resultante para contas bancárias na Suíça e no Chipre.
Os Estados Unidos foram implicados nesse desenrolar de fatos lamentáveis. Em meados de 1998, Summers, que pouco depois seria indicado sucessor de Robert Rubin como secretário do Tesouro, chegou ao ponto de fazer questão de aparecer publicamente ao lado de Anatoly Chubais, o principal arquiteto da privatização russa. Com isso, os EUA davam a impressão de estar se alinhando com as próprias forças que estavam reduzindo a população russa à miséria. Não surpreende que o sentimento antiamericano tenha se espalhado como um incêndio em mata seca.
Num primeiro momento, apesar da admissão feito por Talbott, os verdadeiros crentes no Tesouro e no FMI continuaram a insistir que o problema não era causado por terapia demais, mas por choque de menos. Mas a implosão da economia russa prosseguiu ao longo de meados da década de 90. A produção caiu pela metade. Enquanto apenas 2% da população vivia em pobreza mesmo no final do triste período soviético, as supostas reformas viram o índice de pobreza subir para quase 50%, com mais de metade das crianças russas vivendo abaixo da linha de pobreza. Foi apenas recentemente que o FMI e o Tesouro admitiram que a importância da terapia foi subestimada -embora agora afirmem que era isso que diziam desde o começo.
A situação da Rússia hoje continua desesperadora. Os altos preços do petróleo e a longamente resistida desvalorização do rublo ajudaram o país a se recolocar parcialmente em pé. Mas os padrões de vida ainda estão muito inferiores ao que eram no início da transição. A desigualdade de renda é enorme, e a maioria dos russos, amargurada pela experiência, já perdeu a confiança no mercado livre. Uma queda significativa nos preços petrolíferos quase certamente inverteria os modestos avanços conseguidos até agora.
O Leste Asiático está em situação melhor, embora também enfrente problemas. Quase 40% dos empréstimos da Tailândia continuam sem serem pagos, e a Indonésia permanece atolada em recessão profunda. Os índices de desemprego permanecem muito mais altos do que eram antes da crise, mesmo no país que apresenta o melhor desempenho da região, a Coréia do Sul. Os defensores do FMI querem fazer crer que o fim da recessão é testemunha da eficácia das políticas do Fundo. Bobagem. Toda recessão acaba algum dia. Tudo que o FMI fez foi agravar as recessões asiáticas, tornando-as mais profundas, mais prolongadas e mais difíceis. De fato, a Tailândia, o país que seguiu mais de perto as prescrições do FMI, vem apresentando desempenho pior do que a Malásia e a Coréia do Sul, que seguiram rumos mais independentes.
Já me perguntaram muitas vezes como pessoas inteligentes -até mesmo brilhantes- podem ter criado políticas tão ruins. Uma explicação é que essas pessoas inteligentes não faziam uma disciplina econômica inteligente. Repetidas vezes fiquei estarrecido ao constatar até que ponto eram desatualizados e desafinados com a realidade os modelos empregados pelos economistas de Washington. Por exemplo, fenômenos microeconômicos como a falência e o medo de moratória estavam na base da crise no Leste Asiático. Mas os modelos macroeconômicos usados para analisar essas crises normalmente não tinham suas raízes em microfundamentos, de modo que não levavam em conta as falências.
Mas a disciplina econômica falha era apenas sintoma do verdadeiro problema: a falta de transparência. Pessoas inteligentes apresentam tendência maior a fazer coisas estúpidas quando se isolam das críticas e dos conselhos vindos de fora. Se há uma coisa que aprendi, trabalhando com o governo, é que a abertura é mais essencial nos campos em que o conhecimento especializado é mais necessário. Se o FMI e o Tesouro tivessem se aberto mais ao exame e à critica de fora, seus erros talvez tivessem vindo à tona muito antes e com muito mais clareza. Os críticos da direita, como Martin Feldstein, presidente do conselho de assessores econômicos de Reagan, e George Shultz, secretário de Estado de Reagan, se uniram a Jeff Sachs, Paul Krugman e a mim na condenação das políticas adotadas. Mas, com o FMI insistindo que suas políticas estavam acima de qualquer crítica -e na ausência de qualquer estrutura institucional que pudesse obrigá-lo a prestar atenção-, nossas críticas de pouco serviram. Mais assustador ainda é o fato de que os críticos internos, especialmente aqueles que deviam explicações diretas à população em função das regras democráticas, não foram informados dos fatos. O Departamento do Tesouro é tão arrogante em relação a suas análises e prescrições econômicas que muitas vezes mantém controle rígido -rígido em demasia- sobre o que até mesmo o presidente pode ver.
Uma discussão aberta teria levantado questões profundas que ainda hoje merecem muito pouca atenção por parte da imprensa americana. Até que ponto o FMI e o Departamento do Tesouro impuseram políticas que, na realidade, contribuíram para intensificar a volatilidade econômica global? (Em 1993 o Tesouro pressionou pela liberalização na Coréia, passando por cima da oposição do conselho de assessores econômicos. O Tesouro venceu a batalha interna na Casa Branca, mas a Coréia e o mundo pagaram um preço alto por sua vitória.) Será que algumas das críticas ásperas feitas pelo FMI em relação ao Leste Asiático tinham por objetivo desviar a atenção de suas próprias culpas? E, o que é mais importante, será que os EUA -e o FMI- impõem políticas porque nós, ou eles, acreditávamos que essas políticas ajudariam o Leste Asiático, ou porque acreditávamos que elas beneficiariam interesses financeiros nos EUA e no mundo industrial adiantado? E, se acreditávamos que as políticas que ditávamos estivessem ajudando a Ásia, onde estavam as evidências disso? Na condição de participante nessas discussões, tive acesso às evidências. Elas não existiam.
Desde o fim da Guerra Fria, as pessoas encarregadas de levar o evangelho do livre mercado até os mais longínquos cantos do mundo ganharam um poder tremendo. Esses economistas, burocratas e funcionários agem em nome dos Estados Unidos e dos outros países industriais avançados, mas falam uma língua que poucos cidadãos medianos compreendem e que poucos dos responsáveis pelo traçado das políticas se dão ao trabalho de traduzir. Hoje em dia a política econômica talvez constitua a parte mais importante da interação dos EUA com o resto do mundo. Entretanto, a cultura da política econômica internacional na mais poderosa democracia do mundo não é democrática.
É isso o que tentarão dizer os manifestantes que vão gritar às portas do FMI nos próximos dias. É claro que a rua não é o melhor lugar para discutir essas questões altamente complexas. Alguns dos manifestantes estão tão pouco interessados num debate aberto quanto os representantes do FMI. E nem tudo que os manifestantes disserem será correto. Mas, se as pessoas às quais confiamos a gestão da economia mundial -no FMI e no Departamento do Tesouro- não iniciarem um diálogo e não derem ouvidos a essas críticas, as coisas vão continuar a dar muito, muito errado. Não é a primeira vez que vejo isso acontecer.


Joseph Stiglitz é professor de economia (licenciado) na Universidade Stanford e membro sênior do Instituto Brookings. Foi economista-chefe e vice-presidente do Banco Mundial. Participou do conselho de assessores econômicos da Presidência dos EUA de 1993 a 1997.
Este artigo foi publicado originalmente pela "The New Republic"


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