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RUBENS RICUPERO
Uma injustiça do tamanho do mundo
O flagelo que nos assola não é cega catástrofe da natureza; trata-se de alteração que tem causa na ação humana
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OS ESTADOS UNIDOS E A EUROPA
respondem por dois terços
dos gases causadores da mudança climática, enquanto os 840
milhões de africanos mal atingem
3%. Em compensação, as secas e as
inundações decorrentes do aumento da temperatura castigarão muito
mais os africanos, inocentes de culpa, do que os ocidentais, vilões históricos do aquecimento global desde que a Revolução Industrial desencadeou o processo, dois séculos e meio
atrás.
Ninguém é insensível à disparidade tão monstruosa entre causa e
efeito. É sugestivo, porém, como a
nacionalidade ou a classe fazem ver
coisas diferentes ao olharem para o
mesmo fenômeno.
Para um intelectual da conservadora Hoover Institution ouvido por
jornal americano, é como o naufrágio do Titanic. A natureza não seria
democrática: os imigrantes da terceira classe dos porões do navio têm
chance muito menor de se salvarem
do que os passageiros da primeira no
convés de cima. A comparação é duplamente pérfida ao insinuar não só
que a culpa é da natureza, não dos
homens, mas ao acentuar de lambuja que também as diferenças de classe e riqueza são uma fatalidade "natural".
Já o presidente de Uganda, ao discursar em reunião da União Africana, sustenta que a África está sendo
vítima de uma "agressão global". É a
única descrição que se ajustaria ao
processo humano pelo qual o Alasca
e a Sibéria se tornariam talvez aptas
à agricultura às custas de acelerar a
desertificação da África.
Quem tem mais razão é o africano.
O flagelo que nos assola não é uma
cega catástrofe da natureza, como a
queda de meteorito que não se pode
evitar ou desviar. Trata-se de alteração ocasionada pela ação humana, a
primeira vez em que os homens se
tornaram capazes de afetar o que
parecia fora do alcance de nossas
forças, a atmosfera e o clima.
Aí se encontra o caráter único do
processo, a marca humana que permite falar em injustiça, e não em fatalidade. Não surpreende por essa
razão que o governo dos Estados
Unidos, responsáveis por mais de
30% das emissões, tenha teimado
tanto em negar a evidência científica
de que a mudança do clima não se
devia a causas naturais, mas sim a
humanas.
Reconhecer que a alteração é causada por homens e por alguns, mais
que outros, é ter de admitir o princípio da "responsabilidade diferenciada", consagrada na Convenção sobre Mudança Climática. É, portanto,
direito internacional positivo, que
não se pode discutir nem negar.
Da mesma forma, o compromisso
assumido pelos signatários da Convenção (também os Estados Unidos) de ajudarem os mais vulneráveis com os custos da adaptação é
questão de justiça, não só de solidariedade. Assim como a paz, a justiça
e a solidariedade serão indivisíveis
ou não serão nada. Isto é, não podem
ser parciais, discriminatórias, egoisticamente seletivas.
O governo americano, por exemplo, espera solidariedade de todos
na luta contra o terrorismo internacional que o ameaça. Ao mesmo
tempo, recusa limitar as emissões de
gases, contribuindo para apressar o
desaparecimento físico de ilhas do
Pacífico ou regiões de Bangladesh,
povoadas por centenas de milhões
de pessoas.
A agenda internacional é injusta,
estúpida e ilegítima pois privilegia o
terrorismo, a proliferação de armas
(apenas de alguns), o Iraque, o Irã, e
relega a tratamento secundário à
mãe de todas as ameaças, a que afeta
o planeta inteiro, até mesmo os ricos. Os britânicos admitiram sua
responsabilidade histórica e estão
dando um exemplo ao mundo. É
uma tragédia que, nesse ponto, tenham tão pouca influência sobre
seus aliados americanos.
Mas os Estados Unidos não são os
únicos em dívida com a Terra. O
Brasil, apesar do etanol e de equação
energética mais limpa, é réu de culpa tríplice: pelas queimadas na
Amazônia, quarta ou quinta maior
fonte de gases causadores de efeito
estufa; pela destruição das matas ciliares e desrespeito dos 20% da reserva legal de Mata Atlântica em
muitos canaviais; por sistema desumano que obriga 200 mil colhedores de cana à exaustão, chegando às
vezes à morte, a fim de alcançarem
paga condigna.
Nessa injustiça do tamanho do
planeta, o Brasil é vilão e vítima.
Tem de fazer sua parte pois, como
dizia Chesterton do pecado original,
"estamos todos no mesmo barco e
todos com enjôo".
RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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