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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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SONHO DISTANTE

Supérfluos são os primeiros a serem cortados da lista, mas itens como educação dos filhos também sofrem

Aperto faz classe média "baratear" hábitos

SANDRA BALBI
DA REPORTAGEM LOCAL

Espremida entre as agruras do presente e as incertezas do futuro, a classe média vive na corda bamba. Para se equilibrar sobre uma renda cada vez mais tênue ela abriu mão de símbolos de sucesso, de conforto e, em alguns casos, cortou a própria carne.
A pesquisa Ipsos-Marplan detectou que nos últimos seis anos as classes A e B -consideradas classe média pelos bens que possui e pelo nível de renda- cortaram fundo os gastos supérfluos. Esses são os primeiros a serem abatidos pela tesoura quando a situação aperta.
No entanto, mesmo despesas consideradas sagradas pelas famílias, como as com educação dos filhos, vêm entrando na lista de contenção de gastos. O alto custo das mensalidades escolares é o responsável pela migração de alunos das escolas particulares para as públicas.
Segundo a pesquisa do Índice do Custo de Vida da Classe Média, elaborada pela Ordem dos Economistas de São Paulo, as mensalidades escolares aumentaram 205%, desde o Plano Real até maio deste ano, na cidade de São Paulo. "A classe média há muito tempo vem migrando para a rede pública", diz Peter Greiner, coordenador do ICVM.
Dados da Ipsos-Marplan revelam que no ano passado caiu 2,1% o percentual de filhos da classe média alta em escolas particulares. Ao mesmo tempo, aumentou 3,7% o percentual desses estudantes na rede pública. Na classe A já chega a 18,3% o percentual de estudantes entre 10 e 19 anos de idade, que frequentam escolas do governo. Na classe B, esse percentual sobe para 54,8%.

Egos feridos
A corrosão financeira que derrubou o padrão de vida da classe média e feriu egos atingiu seu ápice em 2002. "O nível de consumo se deteriorou até 2001, mas no ano passado a queda foi mais acentuada", diz Daina Ruttul, diretora da Ipsos Brasil, empresa de pesquisa de mercado origem francesa.
As classes A e B passaram a malhar menos em academias, trocaram um Chateauneuf-du-Pape pelos vinhos da serra gaúcha e o malte escocês pela velha e boa caipirinha. Entre 1998 e 2002, os itens bebidas importadas e frequência a academias foram os que mais perderam espaço nos hábitos de consumo dessas classes, segundo a pesquisa Ipsos-Marplan.
Também a cultura e o lazer padeceram: o percentual de pessoas de classe média que frequentam clubes, teatros e viajam no país e para o exterior encolheu desde 1998. Até as "neuras" com segurança -típicas de quem ainda tem algo a perder- foram engavetadas. Apenas 37,5% da classe A e 14,4% da B têm seguro de carro, por exemplo.
Outras obsessões, como o estudo de línguas, estão sendo revistas principalmente pela classe A. No ano passado, caiu 8,5% o percentual de pessoas desse segmento que estuda inglês.
Segundo Ruttul, elas puderam abdicar desse gasto, pois 53% da classe A já lê e fala inglês. "Mas a classe B continua estudando, pois só 20% dela domina o idioma."
Ao podar os orçamentos, entretanto, ninguém mergulhou no purgatório: a classe média perdeu a pose, mas não abandonou o gosto pelo que é bom -tampouco abdicou de sonhos. "Tudo que exige uma renda maior foi substituído: as viagens mais longas, por exemplo, foram trocadas pelas de final de semana", observa Ruttul.
A "troca" vale também para o lazer: nos últimos seis anos diminuiu o percentual de pessoas que frequentam teatros, mas, em compensação, aumentou o daquelas que curtem um bom livro como forma de entretenimento.
Alguns bens de consumo, entretanto, escaparam do "check-list". Microcomputadores e celulares foram os únicos que aumentaram sua presença nos lares de classe média, acima da taxa de crescimento populacional. "Esses produtos ainda têm baixa penetração, especialmente na classe B, e tiveram redução de preços por conta da evolução tecnológica e aumento da concorrência", diz Ruttul. No último ano, porém, o consumo desses itens estagnou.
Segundo Ruttul, a população brasileira cresceu 15% nos últimos seis anos. "Para manter o padrão de vida, o consumo de bens teria de ter crescido na mesma proporção, o que não aconteceu."

Juízo
O aperto na renda mudou não só o padrão de consumo da classe média, mas levou-a à reflexão. Pesquisa realizada pela Interscience em seis capitais mostra que essas pessoas estão preocupadas com o futuro, menos consumistas e mais poupadoras.
Nos últimos anos elas passaram a planejar gastos, comprando menos por impulso. Segundo a pesquisa, cresceu na classe média o hábito de fazer orçamento doméstico. Em 1994, só 35% das famílias controlavam as despesas na ponta do lápis: em 2002, 68% faziam orçamento.
O objetivo de pôr ordem nas finanças, segundo Paulo Secches, presidente da Interscience, é deslocar recursos de bens de consumo para a formação de uma poupança para o futuro. "Esse movimento se intensificou nos últimos anos, devido às oscilações da economia e ao temor do desemprego", diz Secches.
No ano passado, o percentual de pessoas da classe A que compraram um plano de previdência, para complementar renda na aposentaria, aumentou 67%. Na classe B o impulso foi de 56%, segundo dados da Ipsos. Na ginástica que tem sido obrigada a fazer para enfrentar os novos tempos, a classe média, ao que parece, tomou juízo e agora mira o longo prazo. É condição para sobreviver.

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