São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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MERCOSUL
Jorge Campbell, subsecretário de Relações Econômicas da Argentina, justifica barreiras não-tarifárias
Imitamos o Brasil, afirma argentino

24.jul.98 - Clarin
Jorge Campbell, subsecretário de Relações Econômicas Internacionais da Argentina


ANDRÉ SOLIANI
de Buenos Aires

A mais recente estratégia de defesa comercial argentina é inspirada no modelo brasileiro: criar barreiras não-tarifárias, baseadas em normas técnicas para a importação de produtos.
"Não podemos ofender nenhum brasileiro dizendo que estamos imitando o Brasil", afirmou um dos principais negociadores argentinos, Jorge Campbell.
A resposta de Campbell, subsecretário de Relações Econômicas Internacionais do governo argentino para o Mercosul, referia-se à decisão da Argentina de obrigar os importadores de sapatos a pedir autorização ao governo, antes de entrar com o produto no país.
A decisão é justificada pelo controle de qualidade e proteção do consumidor, mas o diplomata argentino aceita, com ironia, que se trata de um medida defensiva.
Não conseguiu explicar, no entanto, a incoerência argentina de adotar licenças não-automáticas, depois de ter processado o Brasil no tribunal arbitral do Mercosul, por estabelecer mecanismos do mesmo tipo.
Quanto à acusação de que a Argentina quer proteção para os setores atrasados e fomentar o livre comércio para as indústria na qual é competitiva, Campbell foi enfático: "É óbvio. Acontece na Argentina, no Brasil e nos Estados Unidos".
Campbell recebeu a Folha no Ministério de Relações Exteriores, na última quarta-feira, após a reunião de Montevidéu, no Uruguai, na qual os países do Mercosul não conseguiram chegar a nenhum acordo.
Como um bom diplomata, enxergou o lado positivo: "Os ministros dos países puderam dizer explicitamente que não estavam de acordo, sem medo de acabar com o Mercosul. Não é mau estarmos em desacordo".
A seguir, os principais trechos da entrevista.

Folha - É preciso esperar o fim deste governo para retomar as negociações com o Brasil?
Jorge Campbell -
Não. De fato, as negociações com o Brasil e no Mercosul não estão interrompidas. Da reunião de Montevidéu saíram as reuniões de coordenação macroeconômica e monitoramento comercial, marcadas para a semana que vem. Há certas coisas, no entanto, que sabemos que vão além do horizonte deste governo.

Folha - Que temas vão levar mais tempo?
Campbell -
Um dos resultados centrais da reunião de Montevidéu foi ver que os ministros dos quatro países faziam propostas na direção de fortalecer o Mercosul. Mas não entramos num acordo, pois é uma questão complexa.

Folha - Como desatar o nó do desacordo?
Campbell -
Não é indicado tomar decisões de caráter estrutural ou fazer diagnósticos de longo prazo quando se está vivendo uma conjuntura muito especial. Há uma tendência a confundir, sobretudo, se é uma situação negativa.
Nos últimos tempos, a uma situação que já era ruim se somou um monte de declarações públicas, que não serviram para nada.
Para a trégua, é bom que os argentinos não comprem mais jornais brasileiros e os brasileiros não comprem mais jornais argentinos pelos próximos 90 dias.

Folha - Os industriais argentinos culpam a desvalorização brasileira pela recessão e pelo desemprego. Não é um exagero?
Campbell -
Sem dúvida. As cifras mostram que o comércio entre o Brasil e a Argentina começou a cair em outubro de 98. Essa situação é anterior à desvalorização, o que demonstra que o comércio é muito sensível ao nível de atividade econômica. Esse é o problema.

Folha - Então a desvalorização não é o problema?
Campbell -
A desvalorização explicita que para ter um projeto de integração profunda e de longo prazo é preciso ter políticas macroeconômicas convergentes ou, pelo menos, coordenadas.

Folha - A diplomacia brasileira reclama da falta de estatísticas que provem os danos das exportações a determinados setores.
Campbell -
Uma coisa é a estatística, outra coisa é a análise. As estatísticas de comércio dos dois países são muito parecidas. Para os produtos mais sensíveis se sabe exatamente o que se está passando. O Brasil diz que a Argentina afirma coisas que não pode demonstrar com os números.

Folha - Parece que a Argentina tem interesse em fomentar a abertura nos setores em que é competitiva e usar o protecionismo nos setores em que está defasada.
Campbell -
É óbvio. Acontece na Argentina, no Brasil e nos EUA. Um país tem tendência a ter um discurso muito "free-trade" para os setores competitivos e um discurso diferente para os setores não-competitivos.
Durante o período de adequação para o livre comércio, muitas coisas que dissemos que íamos fazer não fizemos: coordenação macroeconômica e de políticas públicas. Está bem que alguns setores digam: "vocês como governo não fizeram o que prometeram". Está bem que protestem.

Folha - Está bem que o governo responda a esses protestos?
Campbell -
A verdade é que o governo aceita muito poucos. No caso das salvaguardas de tecidos, não é um protesto, mas uma apresentação legal, formal. Queira ou não queira, o governo teria que aplicar, pois é uma lei. Não é nada demais que um país trate de proteger, sem que a palavra seja mal-entendida, aos setores menos competitivos. A discussão é sobre quais instrumentos usa.

Folha - A nova legislação para entrada de sapatos, baseada na lei de defesa do consumidor, é na verdade uma medida de proteção?
Campbell -
Eu poderia dar uma conferência sobre a importância que é a etiqueta para os calçados. Você poderia me escutar com um sorriso de dúvida e eu teria que aceitá-lo.
Um dos problemas mais graves do comércio no mundo, e no Mercosul, são as normas técnicas. E, para ser justo, o Brasil tem uma grande experiência e conhecimento nisso.

Folha - A Argentina está imitando os instrumentos de defesa que usa o Brasil?
Campbell -
Se eu fosse brasileiro e me dissessem que a Argentina está imitando o Brasil deveria me sentir orgulhoso. Não podemos ofender nenhum brasileiro dizendo que estamos imitando o Brasil. A Argentina e o Brasil precisam trabalhar mais em temas de regulamento técnico. Senão vamos ter tarifas zero e 2 milhões de barreiras técnicas.

Folha - Não é incoerente que a Argentina decida adotar licenças não-automáticas contra sapatos brasileiros, depois de ter levado o Brasil ao tribunal arbitral do Mercosul, porque o Brasil havia adotado licenças não-automáticas?
Campbell -
A decisão do tribunal foi clara. Estão proibidas as licenças não-automáticas, mas existe a permissão para adotá-las até 31 de dezembro deste ano.

Folha - Sim, mas do ponto de vista de coerência?
Campbell -
A próxima pergunta, por favor.

Folha - Alguns analistas afirmam que é preciso voltar atrás com o Mercosul e propor uma integração menos ambiciosa.
Campbell -
No meio intelectual se propôs substituir a união aduaneira por uma zona de livre comércio. Do ponto de vista técnico é um erro. Do ponto de vista político, desacertado.
Muitos comparam o Mercosul com um ideal intelectual. Se comparado contra esse ideal, o Mercosul é uma porcaria. O Mercosul não é um exercício intelectual, mas um exercício de política real. O Mercosul é o que nossos países são. Nunca será mais sério ou mais ordenado.

Folha - Depois de Montevidéu, pela primeira vez parece que se admitiu que o Mercosul pode acabar, caso os países não avancem.
Campbell -
Se essa é uma conclusão, é boa, pois obriga os países a levar a sério o debate. Há outra conclusão: os ministros dos países puderam dizer explicitamente que não estavam de acordo, sem medo de acabar com o Mercosul. Não é mau estarmos em desacordo.


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