São Paulo, terça-feira, 15 de outubro de 2002

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LUÍS NASSIF

Pensando no 2º tempo

O clima que toma conta do país, hoje, não é simplesmente a euforia pré-eleitoral de outras eleições. É um corte, com poucos paralelos na história recente do país. Ocorreu algo parecido no começo da chamada Nova República, mas sem um décimo da intensidade do momento atual.
Não se trata de uma manifestação restrita a grupos organizados, mas uma catarse que está perpassando o país em todos os níveis, ante a possibilidade de mudança da estrutura de poder. É momento mágico, historicamente relevante, mas politicamente perigoso, porque pressupõe uma travessia delicada até a outra margem do rio, que exigirá, mais do que nunca, coragem e lucidez da parte das lideranças maiores do país -das novas e das atuais.
Nos próximos meses, a mudança no sistema de poder deflagrará dois processos que se afetarão mutuamente. No campo da alta política, haverá a formação de blocos de coalizão, pactos e compromissos mútuos. O risco maior não reside aí, mas quando se desce para outras áreas, menos organizadas e disciplinadas e, principalmente, para o cidadão comum.
Terminadas as eleições, haverá meses de libação, a desforra de todas as decepções dos últimos anos. Não é um processo que se esgota no próprio período eleitoral, quando se tem o culpado a ser derrotado, o presidente da República, e é mais psicológico do que político.
O clima que está se formando vai além das eleições e não se dissipará seja qual for o candidato eleito.
A desforra não é simplesmente contra um modelo econômico equivocado, ou contra um governo que sai. É um sentimento difuso, em que todas as frustrações virão à tona quando se criar o vácuo psicológico de poder, o período que vai da saída de um poder até a consolidação de outro.
Nesse período, não há definições sobre cargos e questões, não se tem o perfil do governo, não se tem a autoridade investida do formalismo do cargo. É nessas ocasiões que o cão aparece, que a sociedade perde os freios, que os piores instintos vêm à tona, misturando vendeta e frustrações, facilitando as explosões de linchamento.
Essa disputa se dará em todos os níveis, no âmbito das universidades, das repartições públicas, na desforra pessoal. Já investi aqui contra muitas formas de linchamento, em episódios jornalísticos específicos. Agora, o que estará em jogo não serão discussões sobre "pataxós" e "Escolas Bases", mas o próprio destino individual das pessoas -algo muito mais fluido e difícil de atender do que os destinos do país.
Nem se pense que essa situação se resolva com a eleição do candidato A ou B. É uma travessia inevitável para a nova ordem -que nem se sabe qual será-, mas que terá que ser conduzida com muito cuidado. Passado o porre com a mudança, a ficha começará a cair. Se verá que a situação continuará a mesma, que o desconforto não desaparecerá.
É nesse momento que as lideranças políticas terão que agir com muita energia. De sua legitimidade dependerá a manutenção da estabilidade e a travessia segura. E aí se verá, plenamente, a importância das medidas coerentes, da união política, da racionalidade econômica. Se se perde a legitimidade, ocorre o estouro da boiada.
Uma das formas de atuação política será no campo ritual, os encontros públicos entre líderes, a formalização pública de solidariedade contra a crise, a presença constante na televisão, a criação de eventos que demonstrem coesão política, união, compromisso de mudar -mesmo que não tragam resultados de curto prazo ou até mesmo que sejam inócuos. Reforma tributária tem importância ritual maior até do que sua importância econômica.
Uma segunda linha de atuação será impor disciplina severa às libações inevitáveis de terceiro e quarto escalões, que tentarão se valer do momento para acerto de contas. Esses porres não duram muito, mas não podem deixar sequelas. Caso contrário, o país rachará ao meio e, ao primeiro sinal de enfraquecimento do novo governo, o exporá às represálias dos que se sentirem atingidos no primeiro tempo.
As lideranças petistas parecem ter clareza sobre o processo. Mas terão que dispor de um plano de contingência para evitar uma noite de são Bartolomeu. Sob o risco de se expor às intempéries do segundo tempo.

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