São Paulo, sábado, 15 de novembro de 2008

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Modelo de banco precisa ter mudanças, diz Nobel

Prêmio Nobel da Paz, Muhammad Yunus diz que os bancos têm incluir os mais pobres

Economista é cauteloso sobre o Bolsa Família, diz que a crise não afeta com força o microcrédito e defende mais voz aos emergentes no G20

MAURÍCIO MORAES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Muhammad Yunus em nada lembra um banqueiro tradicional. Prêmio Nobel da Paz em 2006, o economista de Bangladesh facilmente seria apontado como sendo do tipo zen. Ph.D em Economia e criador do conceito de microcrédito nos anos 70, foi fundador, em 1983, do banco Grameen, que concede empréstimos sem fiador aos mais pobres.
O "banqueiro dos pobres", como é conhecido, defende uma atuação mais abrangente e inclusiva dos bancos e propõe, diante da crise mundial, uma reestruturação do sistema bancário e financeiro, com a atuação dos emergentes como o Brasil. Yunus, 68, passou menos de dois dias em São Paulo, nesta semana. Esteve na feira ExpoManagment, onde lançou o livro "Um Mundo sem Pobreza - A Empresa Social e o Futuro do Capitalismo" (Ed. Ática).
O economista, um capitalista assumido (embora o sistema esteja "pela metade", diz) é cauteloso sobre programas de distribuição de renda como o Bolsa Família. "Uma coisa importante a lembrar é que isso não pode ser tornar algo permanente", afirma.

 

FOLHA - No Brasil, há um ditado que diz que mais bombástico que o fechamento de um banco é a abertura de um novo. Isso é baseado em suposta idéia de que os bancos são maus. O sr. concorda?
MUHAMMAD YUNUS
- Os serviços financeiros são muito importantes. O dinheiro dá o direito à posse. Quando você tem dinheiro na sua mão, você controla os recursos. E isso é dado pelo que chamamos "banco". E o banco vai decidir a quem dar esse poder. E isso é um tremendo poder. Ter o poder de dar o poder. O Grameen decidiu dar o poder a quem não tinha poder e isso faz toda a diferença. Antes se dizia que isso era impossível, mas nós fizemos -dar crédito aos rejeitados pelo sistema. E isso vai contra as convenções do sistema financeiro. É um bom tempo para pensar no desenho de todo o sistema.

FOLHA - E o sr. acredita que os bancos estão preparados a dar "poder" aos que não têm "poder"?
YUNUS
- A questão não é a impossibilidade de dar mais poder aos pobres. Simplesmente, o que se pensa é que esse poder não pode ser dado a eles [os mais pobres]. Nós mostramos que isso é possível. A questão é reorganizar o sistema financeiro para que isso seja possível.

FOLHA - Um dos princípios do banco Grameen é dar empréstimos sem garantia. É um sistema baseado na confiança. Foi justamente aí que se deu o estopim da atual crise. Foram dados muitos empréstimos sem garantia no mercado imobiliário americano e a confiança evaporou. Como esta crise poderia afetar o Grameen e o sistema de microcrédito?
YUNUS
- Todo o colapso aconteceu porque o sistema financeiro continuou a criar castelos de areia. Ficou longe da realidade. Quando uma parte desse sistema quebra, tudo entra em colapso. O microcrédito é muito próximo à terra firme. Quando nós emprestamos dinheiro a uma mulher pobre para comprar uma vaca, você sabe que por trás daqueles US$ 200 há uma vaca. Nesse sentido, o microcrédito não está sendo afetado. Mas poderia ser afetado de forma indireta. Quando o sistema financeiro quebra, os ricos perdem muito dinheiro. Mas há ainda muita sobra. Já os pobres, se perdem seus empregos com a economia em desaceleração, sofrem com o colapso. São os 3 bilhões mais pobres que mais sofrem, não o cara que tinha US$ 1 bilhão e perdeu a metade. Quando a economia se desacelera, os empréstimos do sistema de microcrédito podem, então, ter dificuldades porque eles [tomadores de crédito] não conseguem vender seus produtos [financiados], porque ninguém tem dinheiro para comprar. Nesses termos, o sistema de microcrédito pode ser afetado, mas do lado institucional vai bem.

FOLHA - Muito da boa performance da economia brasileira é explicada pela expansão do crédito. Qual papel o microcrédito desempenha no Brasil?
YUNUS
- Há, provavelmente, milhões de pessoas no Brasil que não têm acesso ao crédito. Então, o microcrédito é necessário. É um sistema que funciona para todo mundo, nas mais remotas áreas, aos mais pobres.

FOLHA - O que o sr. acha de programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família?
YUNUS
- Há muitas justificativas para tais programas. Há entre as condições a exigência de mandar os filhos para a escola, mas ainda assim é uma distribuição livre [de recursos]. Em certas circunstâncias, é necessária. Uma coisa importante a lembrar é que isso não pode ser tornar algo permanente. A intenção é fazer com que as pessoas saiam daquela situação. Mas, às vezes, todo mundo vem para o palco, mas não se qualifica, mesmo com a disponibilidade de dinheiro. Então, à medida que isso inclua as pessoas no sistema, isso é bom. Mas, se isso é esquecido, não é um bom programa.

FOLHA - Os bancos cumprem um papel preponderante no capitalismo. O sr. já disse que é tempo de mudança. Nós precisamos de um novo capitalismo? Como seria?
YUNUS
- Há um grande buraco no sistema, que é baseado numa visão muito estreita da humanidade. Foi por isso que nós criamos esta crise tremenda. Nós usamos o mercado como um cassino de apostas. Atualmente, é incluída apenas parte dos seres humanos e assim se constrói todo um sistema. A definição de negócio no capitalismo é fazer dinheiro. Isso dá aos seres humanos a função de fazer dinheiro. Mas as pessoas não são máquinas. Eu diria que o capitalismo é um sistema ainda pela metade. Se você completar, terá algo muito melhor, algo que eu chamaria de um capitalismo mais completo, mais equilibrado.

FOLHA - O G20 está tentando estabelecer uma nova agenda econômica global. O sr. acha que as coisas podem realmente mudar?
YUNUS
- A questão não é se pode mudar. Tem de mudar. O mundo mudou muito desde que este sistema foi criado (em 1944, em Bretton Woods). O centro de poder do mundo está em mãos de poucas nações. A China, por exemplo, não é a mesma de 60 anos atrás, assim como a Índia e o Brasil. Então, nós precisamos alargar essa nova ordem econômica mundial. E não é uma questão apenas de voz, mas de realidade. Há que incluir as grandes economias como a China, a Índia e o Brasil para que a ordem funcione. Todos os jogadores importantes têm de participar do jogo.

FOLHA - O sr. foi pioneiro ao conceder crédito aos mais pobres. Na atual crise, o que se vê é o dinheiro saindo dos países pobres e indo para a segurança dos títulos do Tesouro dos EUA. O mundo também precisa de um "banco Grameen" para os países pobres? E o FMI, como vai?
YUNUS
- [Risos] Até os países ricos precisam de um Grameen. Globalmente, o FMI [criado em Bretton Woods] se apóia num conceito desenvolvido no pós-guerra. Tudo mudou. Então, uma edição 2008 do FMI precisa ser criada. Se algo não funciona, é preciso redesenhar, no caso, um novo sistema global.



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