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15 ANOS DEPOIS
Ex-presidente relembra elaboração e lançamento do Plano Collor e diz que seu governo acabou com a saída de Zélia
Bloqueio de cruzados era inevitável, diz Collor
LUÍS NASSIF
COLUNISTA DA FOLHA
Há 15 anos, o país passava pela
mais traumática hecatombe econômica desde o "encilhamento",
no alvorecer da República. No
primeiro dia de governo, o presidente Fernando Collor decretava
o bloqueio de todos os depósitos
que excedessem NCz$ 50 mil
(cruzados novos), da conta corrente à poupança. Foi além: impôs um IOF (Imposto Sobre Operações Financeiras) de 15% sobre
todos os ativos não-financeiros,
como ouro e ações.
Nos meses que antecederam
sua posse na Presidência da República, Collor havia conversado
com inúmeros economistas sobre
a maneira de debelar o processo
inflacionário, que caminhava para uma hiperinflação. De todos
ouvia o alerta de que nada conseguiria se não conseguisse "reduzir
a liqüidez", o excesso de dinheiro
na economia, que produzia uma
espiral de preços.
As lembranças jorram na entrevista telefônica de mais de uma
hora com o ex-presidente, concedida no domingo passado. Derrotado nas últimas eleições para o
governo de Alagoas, Collor dirige
as Organizações Arnon de Mello.
Passa grande parte do tempo em
Maceió, mas vem freqüentemente
a São Paulo.
Decisão do bloqueio
A decisão do bloqueio de cruzados foi tomada em uma reunião
na casa do ex-ministro Mário
Henrique Simonsen, presentes
Collor, Simonsen e os economistas Daniel Dantas e André Lara
Rezende, recorda-se ele.
A conversa sempre esbarrava na
questão da liqüidez. André era
mais falante, Dantas, mais quieto,
Simonsen observava. Lá pelas
tantas, Lara Rezende foi ao ponto:
"Presidente, sem conter drasticamente a liqüidez, não haverá
como resolver esse problema!".
Dantas reagiu: "André, o que você
está sugerindo é politicamente inviável".
Mais tímido que Dantas, embora mais loquaz naquelas circunstâncias, Lara Rezende concordou,
mas sustentou que, tecnicamente,
era o único caminho.
E pediu socorro a Simonsen.
"Concorda, professor?" Simonsen concordou, ressalvando os
riscos políticos.
"Foi aí que me dei conta da inevitabilidade do choque na liqüidez", recorda-se Collor, "mas ainda sem ter muito nítido em que
consistiria." Na reunião, também
não se entrou em detalhes. Collor
aproveitou para saber de Dantas
qual o comportamento do mercado diante de medidas mais drásticas. Dantas foi incisivo: "Presidente, o que o governo pensar em
fazer o mercado vai se antecipar.
Nossa luta no mercado é permanentemente contra o governo, é
prever o movimento do governo e
fazer antes".
"Esse trecho da conversa deixou
claro que, para derrubar o mercado, teria que se fazer algo que nem
o mercado imaginasse que pudesse ser feito", afirma Collor. Quando se pensou no presidente do
Banco Central, também não teve
dúvidas: teria que ser alguém do
próprio mercado, para poder enfrentá-lo.
Nos dias seguintes, a questão do
"choque de liqüidez" ganhou corpo nas discussões internas, das
quais participavam Collor, Zélia
Cardoso de Mello, Antonio Kandir e Luiz Eduardo Assis. E a idéia
já era vitoriosa quando começaram as negociações com o PSDB
para integrar o governo.
Collor procurou o então presidente do partido, senador André
Franco Montoro. As conversas
prosperaram e foram reservados
dois ministérios para o PSDB, o
da Relações Exteriores, para o senador Fernando Henrique Cardoso, e o da Fazenda, para o deputado federal José Serra.
A indicação de Serra foi recebida com entusiasmo por Zélia. Era
seu conhecido e, segundo ela, o
único dos economistas tucanos
que aceitaria a idéia do choque,
por inevitável.
O Ministério da Fazenda foi dotado de uma superestrutura. De
um lado, para evitar qualquer melindre de Serra pelo fato de pegar
o barco andando. De outro, porque haveria a necessidade de uma
gerência severíssima no dia seguinte ao bloqueio.
"Quando Montoro telefonou,
pediu desculpas e informou que a
resistência do senador Mário Covas impediria o acordo. Ficamos
com a broxa na mão", recorda-se
Collor.
Sua equipe era claramente insuficiente. "Dava desespero ver o
pouco que éramos", disse ele. Mas
as pontes haviam sido queimadas
e não haveria como recuar. Chamou Zélia, então, e pediu-lhe que
assumisse o recém-constituído
Ministério da Economia, com sua
estrutura reforçada. Até então, o
cargo reservado para ela era o de
uma espécie de auditora, trabalhando na assessoria pessoal de
Collor.
O passo seguinte foi a escolha
do presidente do Banco Central.
Zélia sugeriu o nome de Ibrahim
Éris, que foi prontamente acolhido pela equipe e sancionado por
Collor.
Choque de liquidez
Ibrahim também acreditava que
não havia saída fora do "choque
de liqüidez". Mas o que significaria, na prática, esse "choque de liqüidez"? Na hora do detalhamento é que se escancarou a bocarra
do bloqueio de cruzados. Meses
antes da posse de Collor, tivera
início um forte movimento de fuga de capitais rumo à caderneta
de poupança. Éris mostrou que o
bloqueio teria que atingir a, até
então, mais segura aplicação brasileira: a poupança. Nos dias seguintes, houve forte movimento
de transferência dos recursos da
poupança para as contas correntes. Não havia como deixá-las de
fora. As circunstâncias obrigavam
um estupro jurídico.
Tomou-se a decisão, então, de
estender o bloqueio às contas correntes, permitindo apenas um
saldo máximo de NCz$ 50 mil na
conta de cada um. A decisão foi
tomada 72 horas antes da posse.
Nem houve tempo de preparar o
anúncio, e aí ocorreu o primeiro
desastre: o de comunicação.
Má comunicação
No final de semana, Collor saiu
meio escondido do Palácio, em
um helicóptero, e foi ter com o
presidente José Sarney, no sítio
São José do Pericumã. Lá, pediu
que o presidente, que saía, decretasse feriado bancário de 72 horas, a fim de lhe dar tempo de
acalmar os mercados. Sarney
concordou sem perguntar o que
pretendia fazer.
Na sexta, dia do anúncio do bloqueio, houve uma reunião prévia
no Palácio do Planalto, presentes
Zélia, Ibrahim, Kandir, alguns
funcionários de segundo escalão,
com 12 jornalistas da área econômica. Foi um festival de confusões. Alguns dos jornalistas saíram com a impressão de que, dali
por diante, o governo confiscaria
qualquer ganho futuro que superasse os NCz$ 50 mil mensais.
A própria Zélia tinha dificuldades imensas de explicar aspectos
técnicos do plano, como o vetor
para a inflação.
Os jornalistas saíram aturdidos,
os de televisão começaram a
transmitir sua perplexidade ao vivo. Horas depois, começou a coletiva de imprensa, no salão do Ministério da Fazenda.
Foi outro horror. Por seu estilo
claro e professoral, Kandir foi o
incumbido de explicar o plano e
responder às perguntas aos jornalistas. Todos estavam extremamente nervosos.
As explicações prosseguiram no
período da tarde com outros assessores. Especialmente o economista Eduardo Teixeira, que se
agregara ao grupo, mostrava-se
muito tenso.
Quando os jornalistas levantavam casos hipotéticos -idosos
com problemas de saúde, precisando sacar o dinheiro, e casos do
gênero-, as respostas vinham
carregadas de agressividade, como se os dramas apresentados
fossem irrelevantes perto do futuro do país. Era puro nervosismo.
Mas, para a opinião pública, passou a impressão de supina arrogância.
Meses seguintes
Os meses seguintes foram dedicados, inicialmente, a administrar
a liqüidez, permitindo a abertura
de torneirinhas que irrigassem a
economia. Foi feito um duríssimo
trabalho de ajuste fiscal, já que o
déficit chegava a 10% do PIB, e
deu-se início a um amplo processo de modernização institucional,
com grandes desastres, como o da
reforma administrativa.
A esse problema se somou um
imprevisto, a demora em renegociar a moratória da dívida externa. Esperava-se uma adesão rápida dos credores; as negociações
levaram dois anos.
Foram completados com a ajuda do então presidente dos Estados Unidos, George Bush, e seu
secretário do Tesouro, Nicholas
Brady. Graças à pressão de ambos, cessou a resistência dos irmãos Hart, do Texas, grandes investidores em títulos da dívida
brasileira e que empreendiam feroz resistência na Justiça americana contra o plano.
O trabalho de Pedro Malan, negociador da dívida, foi relevante
para completar o ciclo. Mesmo
assim, o acordo demorou além da
conta, ampliando os efeitos negativos do bloqueio.
O governo Collor terminou antes do início da campanha do impeachment. Foi quando a imprensa flagrou Zélia dançando o
bolero "Besame Mucho" de rosto
colado com o ministro da Justiça,
Bernardo Cabral.
Crise deflagrada, Collor convocou ambos ao seu gabinete e espinafrou-os. Falou de sua irresponsabilidade para com o país, para
com o projeto de mudanças. Zélia
saiu do governo, levou sua turma
e a energia de Collor. Ele ficou como Sansão sem a cabeleira.
Zélia
A relação entre ambos só é explicável pela química emocional.
Em um depoimento que colhi de
Collor em 1994 e que não divulguei porque ele decidiu se lançar
candidato à Presidência, ele próprio admitia que Zélia não compartilhava de suas idéias sobre o
novo papel do Estado.
A idéia dela era transformar o
BNDES em um imenso IRI (Instituto de Reconstrução Italiano)
para participar do capital das empresas nacionais. Foi a experiência de Collor com a burocracia
pública, como executivo das Organizações Collor, como deputado e prefeito de Maceió que o convenceu de que o caminho seria a
desburocratização e a redefinição
do papel do Estado.
O que tinha Zélia, então, para se
tornar o agente catalisador das
ações de Collor, se não era grande
intelectual nem sequer uma economista média e era uma gestora
sofrível? Collor explica que ela era
muito segura nas decisões e, com
sua equipe, contaminava-o com o
entusiasmo jovem de quem queria mudar o país.
Collor é enfático ao afirmar que
seu governo terminou com a saída de Zélia. A nomeação de Marcílio Marques Moreira visou apenas acalmar os mercados. Estilo
conservador, embaixador em
Washington, negociador da dívida, conhecido da banca internacional, Marcílio deu início à visão
financista da economia.
Dali até o impeachment, no final de 1992, Collor limitou-se a assistir impassível, dia após dia, o
esgarçamento de seu governo.
Anos depois do impeachment,
Lafayette Coutinho, ex-presidente do Banco do Brasil, contou que
negociou o apoio a Collor pessoalmente com Orestes Quércia e
o governador paulista, Luiz Antonio Fleury. Foi redigido um documento com as demandas de ambos, que Lafayette levou a Collor.
Semanas depois entrou no gabinete de Collor e o envelope permanecia ali, fechado.
O governo Collor entrou para a
história pelo bloqueio dos cruzados, pelos esquemas PC Farias,
Leopoldo Collor e Pedro Paulo
Leoni, pelas alianças com Wagner
Canhedo, da Vasp, com os irmãos
Martinez, da rede CNT de televisão, pela campanha do impeachment, pela arrogância de uma
equipe imatura e pelo deslumbramento de seu séquito alagoano.
Mas foi nesse primeiro período
Collor, que vai da posse à queda
de Zélia, que foi definido um programa consistente de abertura comercial, um ajuste fiscal relevante, foram instituídos o Estatuto da
Criança e do Adolescente, as leis
de defesa do ambiente e dos índios, o Código de Defesa do Consumidor, o Prêmio Nacional de
Qualidade, a Lei de Incentivo à
Cultura.
No final do governo, seu ministro Hélio Jaguaribe pediu-lhe que
ouvisse as propostas de seu genro,
André Lara Rezende, de um programa de estabilização. Collor ouviu-o sozinho, sem a presença de
Marcílio. Lara Rezende apresentou-lhe um esboço do futuro Plano Real. Dizia-lhe que as mudanças operadas nos últimos anos na
economia tornavam o plano viável. Collor entusiasmou-se. Mas
seu tempo político já havia se esgotado.
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