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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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REUNIÃO DE MIAMI

Reunião ministerial da área de livre comércio começa hoje; negociadores não crêem em acordo amplo

Cúpula nos EUA deve selar Alca esvaziada

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A partir de hoje e até dia 21, Miami se transforma na sede da grande batalha da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), por mais que um especialista da própria cidade imagine que, no pé em que estão as negociações, a Alca será "anoréxica".
É a opinião de Eduardo Gamarra, diretor do Centro de América Latina e Caribe da Universidade Internacional da Flórida, a partir de um dado bastante eloquente: faltam 5.000 pontos para serem resolvidos até se chegar à declaração final da Conferência Ministerial de Miami. Será a oitava reunião ministerial dessa negociação que envolve 34 países, nos quais vivem 800 milhões de pessoas e cujas economias representam algo em torno de US$ 13 trilhões.
A culpa pela anorexia da Alca se transformou em uma batalha verbal entre Estados Unidos e Brasil, exatamente os dois co-presidentes da fase final de negociação (o cronograma original diz que a Alca deve entrar em vigor a partir de janeiro de 2006).
Mas esse Fla-Flu comercial, embora bastante midiático, oculta razões mais profundas para as dificuldades na negociação.
A primeira e mais forte vem sendo a desaceleração da economia mundial, com reflexos, mais ou menos fortes, em todos os 34 países da Alca. Quando a economia desacelera, os atores políticos e sociais têm menos apetite pela abertura comercial, no pressuposto de que ela tira empregos locais para dá-los aos exportadores.
Na quinta-feira, até Robert Zoellick, responsável pelo comércio exterior dos EUA e arauto incomovível do livre comércio, admitiu que o governo americano terá dificuldades em convencer o Congresso a aprovar a Alca em 2005, porque "há muita gente apavorada com esses acordos, devido à situação da economia americana". Além disso, o fracasso estrepitoso da Conferência Ministerial da OMC (Organização Mundial do Comércio), em Cancún, faz apenas dois meses, quebrou o ímpeto das negociações comerciais, globais ou regionais.
Por isso, até mesmo a ministra do Exterior do Chile, Soledad Alvear, outra entusiasta do livre comércio e de uma Alca suculenta, admite que "não parece viável hoje em dia a idéia original (da Alca) incluindo todos os temas e um grande nível de ambição".
Se é assim, parece fortalecida a posição da chancelaria brasileira, que defende uma "Alca light", em que seja discutido apenas o comércio de bens e de serviços (este, mesmo assim, com restrições).
O restante da agenda (regras para investimento, para compras governamentais, para serviços e para questões de propriedade intelectual relativas a comércio, entre outros temas) ficaria ou para o âmbito planetário (a OMC) ou para acordos bilaterais ou plurilaterais entre os países da Alca, mas que não seriam compulsórios.

Acesso a mercado
Marcos Sawaya Jank, um dos maiores especialistas brasileiros em negociações comerciais, presidente do Icone (Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais), imagina que "a expectativa mais positiva neste momento seria conseguirmos uma Alca "light" em regras (subsídios agrícolas, antidumping, investimentos, propriedade intelectual, serviços), porém plena em acesso a mercado".
Acesso a mercado é o jargão para reduzir ou eliminar as tarifas de importação.
Mas Jank deixa claro que acesso a mercado, no caso da agricultura, quer dizer "tudo, 100% mesmo". Completa: "Não podemos aceitar exceção alguma, já que uma lista que abra exceção para apenas 1% dos itens já colocaria açúcar, álcool, carnes, suco de laranja, laticínios, fumo e outros produtos sensíveis fora do bloco".
Quais as chances de obter esses 100%? Quase zero, segundo o jornal "The Miami Herald". Em artigo recente, o principal jornal da cidade que hospedará a conferência da Alca diz que "as demandas brasileiras chegam num momento político delicado para a administração Bush, com a eleição presidencial de 2004 no horizonte. Os fazendeiros da Flórida não querem saber de aumento da competição com as laranjas de baixo preço do Brasil, e outros grandes produtos de exportação do Brasil, açúcar e soja, também tocam nervos sensíveis no cinturão agrícola norte-americano".
Detalhe: os produtores de suco de laranja e de açúcar da Flórida foram grandes financiadores da campanha eleitoral de George W. Bush no ano 2000. E foram os votos da Flórida que decidiram a eleição a favor do atual presidente. Tudo somado, é razoável supor que o resultado mais positivo da reunião de Miami é mesmo uma Alca anoréxica, desde que continue viva.

Iceberg
Afinal, há apenas 15 dias, o embaixador brasileiro Adhemar Bahadian, co-presidente da negociação, comparou a Alca a um navio na direção de um iceberg.
O que se fez de lá para cá foi desviar a rota o suficiente para evitar a colisão. O governo brasileiro decidiu que não poderia nem abandonar a defesa do que considera interesse nacional e aceitar qualquer Alca nem, por outro lado, deixar que o atrito comercial, de que Zoellick era o símbolo, contaminasse as boas relações com a Casa Branca, o Departamento de Estado e o do Tesouro.
Chegou-se entre os dois países, faz apenas dez dias, a um "non-paper" (jargão diplomático para documento oficioso) em que as duas partes aceitam que a negociação se centre em comércio de bens e, nos demais tópicos, cada país fique livre para escolher os acordos que lhe apetecem.
Miami será, em princípio, a negociação final para transformar em papel de fato o "non-paper" -com o que a Alca sobreviverá, ainda que anoréxica, até as próximas negociações.


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