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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O julgamento da história

RUBENS RICUPERO

Não conheço na história internacional do Brasil episódio que haja suscitado juízos mais irreconciliavelmente opostos do que o Tratado de Petrópolis, cujo centenário celebramos amanhã. Para o deputado e futuro diplomata Gastão da Cunha, foi ele o mais importante dos nossos ajustes diplomáticos desde a Independência, conceito provavelmente válido até hoje. Já Teixeira Mendes, o respeitado chefe moral do Apostolado Positivista, queixava-se em carta ao Barão do Rio Branco da "mágoa profunda que nos causa ver o vosso nome em um ato que, estou convencido, a posteridade há de deplorar".
Na mesma linha de sinceridade intransigente, Rui Barbosa, que se demitira da delegação negociadora, rematava sua "Exposição de Motivos do Plenipotenciário Vencido" com profecia tão enfática quanto equivocada: "As minorias nunca têm razão. Essa é, em política, a verdade que não falha. A da história, porém, é outra". Conforme observou Afonso Arinos, "Rui não tinha razão naquele momento nem hoje. A história ficou com os negociadores do tratado (...)".
O Acre foi o problema mais perigoso e difícil enfrentado pela diplomacia brasileira. Sua solução negociada e pacífica, quase um milagre minuciosamente construído por Rio Branco, deveria ter-se imposto com a luminosa evidência das coisas razoáveis. Em vez disso, o tratado desencadeou paixões que beiraram a insensatez. Contra esteve parte expressiva da imprensa, na qual pontificava Edmundo Bittencourt, que ficou a um passo de pregar, no "Correio da Manhã", a sublevação popular. Na Câmara, a oposição teve como líder Barbosa Lima, reforçado no Senado pelo peso de Lauro Sodré. Por trás deles se perfilavam as figuras poderosas de Pinheiro Machado, Rosa e Silva, Rui Barbosa, Joaquim Murtinho, o respeitado ex-ministro da Fazenda de Campos Salles, o senador Azeredo, avô do chanceler de Geisel, Azeredo da Silveira.
Os extremos ideológicos se confundiam no comum repúdio. Numa ponta, os positivistas; na outra, os monarquistas, Andrade Figueira, Martim Francisco, denunciavam a "monstruosidade". Outro monarquista, amigo de mocidade de Paranhos, o Barão de Jaceguai, herói da Passagem de Humaitá, referia-se ao tratado em carta a Nabuco como "o monstruoso parto da inépcia diplomática do nosso comum amigo de outrora".
O que poderia explicar explosões de violência verbal de tamanha desproporção com a realidade dos fatos? Ao lado da lamentável tendência do nosso debate público à falta de moderação e excesso de personalização, havia certamente o oportunismo político de opositores a Rodrigues Alves, que, um ano depois, iria enfrentar outra estranha manifestação de demência coletiva, a Revolta da Vacina, mais ou menos com os mesmos personagens. Para os positivistas, a vacina obrigatória contra a varíola era "violadora de lares" e "túmulo da liberdade". Lauro Sodré conclamava a reagir à bala, o que foi feito pela Escola Militar. Rui, de novo sublime no erro, discursou no Senado para dizer que "a lei da vacina obrigatória é uma lei morta (...) Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme"!
Parte da campanha contra o tratado vinha daí, de gente que era contra o governo a ponto de desejar derrubá-lo pela força (não Rui, é claro). Tratava-se, diga-se de passagem, da Presidência Rodrigues Alves, uma das raras unanimidades da história brasileira, hoje considerado o melhor governo da República Velha, se não de toda a República. O comportamento da imprensa, a favor ou contra, era, dentro da melhor tradição luso-brasileira, atribuído à "cheta", tão cobiçada pelos pseudo-jornalistas de Eça, o Palma Cavalão, por exemplo, isto é, o dinheiro oficial, as subvenções do tempo de Campos Salles, suspensas depois ou usadas apenas para comprar alguns poucos.
A maior parcela da oposição se originava, no entanto, de genuíno sentimento de indignação contra o que se considerava excesso de generosidade com a Bolívia. É espantoso que a aquisição de 190.000 km2 de território habitado por brasileiros mediante compensação pecuniária, promessa de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré e a cessão, no rio Paraguai, em Mato Grosso, de faixa de 3.000 km2 povoada por bolivianos, fosse recebida como intolerável atentado aos interesses da soberania nacional! Os únicos a achar que havíamos prejudicado a Bolívia eram os positivistas, defensores da chamada fraternidade das pátrias americanas.
É sugestivo que, nesse episódio, a inflexibilidade, a intransigência procedam não do diplomata Rio Branco mas do jurista Rui Barbosa, a consciência liberal do país. Foi ele que, após aceitar com relutância a construção de estrada e, ainda mais, a cessão de porto, escrevia: "...somar a todas essas verbas (...) território brasileiro é o que me parece uma generosidade, cuja largueza excede, a meu ver, o limite dos nossos poderes". Optava, em tal caso, pelo arbitramento, que teria significado, quase seguramente, a perda do Acre e a continuação da revolta da população. O Barão não se enganou, ao afirmar: "É porque entendo que o arbitramento seria a derrota que eu prefiro o acordo direto, embora oneroso (porque) este resolve as dificuldades presentes, o outro deixa-as de pé".
Se fui remexer, no fundo do baú das coisas esquecidas, essas velharias que apaixonavam nossos avós, é porque tenho a secreta esperança de introduzir um pouco de sentido de perspectiva e relatividade históricas no debate sobre a Alca. Sobretudo para evitar transformar em guerra inexpiável de religião o que deveria manter-se dentro dos razoáveis limites de discussão objetiva, pragmática, sem perder jamais o senso de proporção e medida.
Como sempre ocorre, o espaço termina antes que eu possa explicitar as analogias e diferenças. O essencial, porém, é ter presente que, se queremos não repetir os erros e exageros do passado, temos de fazer esforço para basear nosso juízo nos fatos da negociação, não em quimeras ou fantasias. Por exemplo: quais são as ofertas concretas dos EUA? Atendem às expectativas brasileiras de ampliar-nos o acesso ao mercado americano? O que sucedeu com o prazo de 15 de julho para negociar as ofertas melhoradas?
Só com base em critérios objetivos como esses é que se poderá chegar a posição definitiva sobre a Alca. Ao atingir tal momento, oxalá possamos declarar, como fez Rio Branco a respeito do Tratado de Petrópolis: "As combinações em que nenhuma das partes interessadas perde e, mais ainda, aquelas em que todas ganham serão sempre as melhores".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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