São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O sociólogo segundo o presidente

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Entrevistado por Roberto Pompeu de Toledo no livro "O Presidente Segundo o Sociólogo", Fernando Henrique Cardoso afirma, entre outras coisas, que "o pessoal de Campinas vive reclamando que o governo não tem uma política industrial, mas tem... O Belluzzo, o Luciano Coutinho e o João Manuel reclamam porque estão com a outra política industrial.... A da época do desenvolvimentismo, em que a visão era de uma economia fechada, para formar o grande capitalismo nacional. O mundo não é mais assim. O Estado tem que ser regulamentador, mas não só. Tem que ser indutor também."
Todos devemos ficar mais tranquilos ao tomar conhecimento que o nosso presidente - sociólogo sabe exatamente quais são os caminhos do mundo. Um Príncipe assim favorecido pela Virtú e pela Fortuna tem todo o direito de tratar com desdém as opiniões infundadas. Incapazes de antecipar o futuro, alguns mortais vêm sustentando, sem qualquer base, que as políticas do governo promovem a desindustrialização e, de quebra, a transferência das empresas nacionais para o controle estrangeiro. Há que contemplar esses fenômenos para além das aparências, com otimismo e sobranceria, apostando na destruição criativa. Breve, daquilo que parece escombros ao olhar do homem comum surgirá uma indústria competitiva e pujante, coisa do Primeiro Mundo.
Reconheço que, diante dessa grandiosa Visão do Paraíso, é injusto ocupar a sabedoria e a clarividência do presidente com as nossas idéias, tão mofinas quanto decadentes. Ainda assim, ouso recorrer humildemente à sua paciência e boa vontade para reapresentar as notas que escrevemos, já há algum tempo, sobre o tema, Luciano Coutinho e eu. Quanto ao professor João Manuel, dedica-se, neste momento, ao estudo da obra de Gilberto Freyre, sabidamente o segundo maior sociólogo brasileiro.
A controvérsia infindável sobre as relações entre Estado e mercado nas economias contemporâneas tem produzido mais fumaça do que fogo. Há quem tome decididamente o partido do Estado mínimo, posição cara aos liberais. Nessa versão radical do liberalismo, o Estado deve se restringir, no campo econômico, à garantia das condições de estabilidade, a desobstruir os entraves à livre concorrência e a remover pontos de estrangulamento na infra-estrutura, danoso à competitividade.
No âmbito das políticas ativas, reza o credo do moderno liberalismo, o Estado deve se circunscrever à oferta dos bens públicos, como Justiça e Segurança, além de prover apoio seletivo a grupos sociais fragilizados, evitando universalizar benefícios, particularmente nas áreas de Saúde e Previdência.
O falso dilema Estado versus mercado omite, de partida, o fato óbvio de que a existência e o bom funcionamento dos mercados requerem a criação de normas e instituições que disciplinem as relações econômicas, como ilustram à saciedade as tentativas desastrosas de transição das economias de comando para o sistema de mercado. Em segundo lugar, a política econômica, ao estabelecer regimes monetários, fiscais e cambiais e ao regular o mercado de trabalho, cria o ambiente e um sistema de sinais destinados a orientar as decisões privadas.
O debate relevante busca definir a melhor forma de articular Estado e mercado, reconhecendo a existência de falhas tanto do mercado quanto da ação governamental. Não se trata apenas de minimizar falhas, mas de reconhecer que certos processos econômicos ganham maior eficiência na presença de coordenação e cooperação entre atores.
É bastante reconhecida a necessidade da intervenção do Estado em processos que envolvam externalidades positivas e negativas, informação assimétrica, incerteza, risco elevado e concentração do poder econômico. Entre as externalidades negativas o exemplo mais conspícuo é o dos danos causados ao meio ambiente. Entre as externalidades positivas estão a construção de infra-estruturas e outros bens públicos, como a geração de conhecimento científico e tecnológico.
A existência de assimetria de informação afeta particularmente os mercados de crédito, de capitais e o mercado de câmbio, podendo dar origem não só à alocação ineficiente de crédito e à marginalização de pequenas empresas, bem como ensejar episódios especulativos. A incerteza, por sua vez, além de provocar volatilidade recorrente nos mercados financeiros e de capitais, tem, por isso mesmo, efeitos adversos sobre o investimento produtivo, sobretudo aquele que envolve inovação. O risco elevado inibe operações de longo prazo de maturação. Em princípio, tais "falhas de mercado" até agora mencionadas recomendariam apenas a adoção de políticas "horizontais" e minimalistas.
As condições de concorrência nas áreas mais dinâmicas da moderna economia industrial vem impondo, no entanto, intervenções estratégicas e concebidas de forma a abranger cadeias industriais inteiras. A omissão fundamental da abordagem que sublinha apenas a existência de "falhas de mercado" diz respeito ao processo de criação de vantagens competitivas, construídas pelas empresas em suas relações com fornecedores e clientes. O novo paradigma industrial vem acentuando sobremaneira a importância dessas vantagens. Entre elas devemos destacar: a) processos cumulativos de aprendizado no desenvolvimento de produtos; b) economias de escala dinâmicas (ganhos de volume associados ao tempo e ao aprendizado); c) estruturação de redes eletrônicas de intercâmbio de dados que maximizam a eficiência ao longo das cadeias de agregação de valor (economia de capital de giro -sobretudo redução de estoques, de custos de transporte e de armazenagem); d) novas economias de aglomeração (centros de compras e de assistência técnica, formação de pólos de conhecimentos técnicos e gerenciais); e) economias derivadas da cooperação tecnológica e do co-desenvolvimento de produtos e processos.
A literatura relevante na área de estratégias empresariais (Porter, Drucker) ou no âmbito da economia industrial (Dosi, Freemann, Arcangeli, Zysmann, Tyson, Malerba) reconhece o caráter decisivo desses processos e, sem exceção, observa que chegam a configurar um padrão de concorrência radicalmente distinto do paradigma anterior. Esse último era baseado em produção padronizada, tecnologia codificada, escalas rígidas, aversão à cooperação. Os autores, em sua maioria, assinalam que a coordenação do Estado foi muito importante para acelerar a mudança de paradigmas, particularmente nas economias que atravessam um processo de industrialização rápida.
A nova concepção de políticas industriais ou de competitividade coloca, portanto, no centro das preocupações a indução daquelas sinergias baseadas no conhecimento e na capacidade de resposta à informação. O novo papel do Estado deve estar concentrado na indução da cooperação, na coordenação dos atores e na redução da incerteza. Sua tarefa não é a de "escolher vencedores", mas a de criar condições para que os vencedores apareçam.
Reconhecendo que a configuração dos setores (cadeias ou complexos) é heterogênea, os Estados nacionais, nos países desenvolvidos, têm buscado combinar os instrumentos clássicos de fomento de acordo com as peculiaridades setoriais. A idéia é aplicar de maneira seletiva e "enfocada" os instrumentos tributários, creditícios, de proteção tarifária e de incentivo à P&D, à exportação e à formação de recursos humanos. Essas, aliás, foram as conclusões de alentado relatório da conservadora OCDE a respeito das políticas e subsídios industriais nos países desenvolvidos.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 55, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).



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