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LUÍS NASSIF
Os meninos do São Benedito
A cidade cresceu muito. De
40 mil passou a 140 mil habitantes. Tem novas universidades, muitos estudantes e professores mudando a face da noite,
ganhou um ar algo cosmopolita.
Em 40 anos, muita coisa mudou,
muitas histórias se acumularam,
muitos personagens surgiram,
deixaram sua marca e depois
desapareceram na poeira dos
tempos.
Mas o céu permanece o mesmo, abrigando velhas lembranças, velhos fantasmas. Especialmente, o largo do São Benedito
permanece quase o mesmo. A
molecada que jogava bola nos
anos 60, que deslizava em seu
cascalho, cresceu, ganhou barriga, calvície, ceticismo. Mas o largo permaneceu quase incólume,
embora emparedado e calçado
que foi nos anos 70.
Olhando-o de baixo, ali do início da rua Rio de Janeiro, quase
esquina com a praça Pedro Sanches, é possível enxergar alguns
vultos. Os céticos diriam que é a
miopia que aumentou com a
idade. Quem sabe das coisas diria que são os velhos personagens do largo, ainda crianças,
ressurgindo da bruma que nasce
do largo e desce para a cidade.
Era por volta de 1960, eu com
dez anos. O São Benedito era um
espaço democrático, cercado pelas ruas Rio de Janeiro e São
Paulo. A Rio de Janeiro era mais
classe média. Tínhamos nós, os
Nassif, os Pagin, um pouco acima o seu Otho e a dona Margarida, alemães de Colônia, mais à
frente os Capitanini e, dobrando
a rua, a rapaziada da Tyresoles
-o Boiadeiro, bom de basquete,
o Paulo Nei, bom de briga, o
Afonso Celso, bom de futebol, o
Toni, bom de vôlei, e o Laurinho,
meu colega, bom de quase todos
os esportes de quadra.
Da rua São Paulo vinham os
amigos mais humildes. O Bacalhau, neto da dona Julia Benzedeira, o Meio-Quilo, filho do seu
Rafael do táxi, o Paulo Delegado
e seus irmãos. Subindo a São
Paulo, ia-se dar na Vila Nova, de
onde vinham o ponta-esquerda
Rusi (de Roosevelt), o João, o
João Maizena e os conguinhos
Luiz Salomão, Pulguinha e Honório. Na parte de baixo da Rio
de Janeiro, a família Reis, composta de filhos e netos da dona
Encarnação, portuguesa que tinha uma pensão pertinho da Assis Figueiredo e oferecia marmita de primeira.
Dos Reis havia minha professorinha do quarto ano, a dona
Neusinha, o Miltinho, bom de
bola, da minha idade, o Brasil,
irmão ou tio dele, e o Euclides,
nosso herói. E foi a lembrança do
Euclides que o São Benedito derramou sobre mim, quando o
contemplei da esquina da rua
Pernambuco no último feriado.
Euclides era bom de bola, driblador emérito, de poucas palavras e muitos sorrisos e muito
atencioso com os meninos mais
novos. Você deve saber bem o
que significa, para um menino
de dez anos, ser tratado com
atenção por um de 14 ou 15 anos
-e ainda por cima craque do time.
Pois Euclides era nosso ídolo. E
foi com o reforço dele e do Brasil
que a molecada do São Benedito
recebeu para um jogo o temerário time do Palmeirinha da Vila
Cruz, liderado pelos irmãos Passarinho, bons de bola e de briga.
Eu tinha dez anos e me encantava com o romance dos "Meninos da Rua Paulo", que descrevia uma briga de dois grupos de
rua, na qual o herói era um menino franzino, que teve participação heróica na briga e terminou morrendo de uma pneumonia insidiosa.
Não lembro como terminou o
jogo. Acho que perdemos, porque o Euclides e o Brasil saíram
muito irritados, pegaram sua
trouxa, com os uniformes e, não
sei por quê, desceram a rua São
Paulo, em direção a sua casa,
que ficava na Rio de Janeiro,
acompanhando a comitiva do
Palmeirinha.
Também não lembro por que
eu e outros meninos da minha
idade, que ficáramos na torcida,
acompanhamos o Euclides. Antes de chegar à esquina da Santa
Catarina, explodiu a briga. Os
Passarinho provocaram o Brasil,
que ficou meio inibido. Nosso
herói, o Euclides, calado como
ele só, de repente explodiu tal
qual um Tancredo, dos Doze de
França, e avançou sobre os Passarinho, que estavam acompanhados de todo o time.
Entrei em pânico e corri para o
São Benedito, berrando por ajuda. Os irmãos Tyresoles surgiram armados de achas de lenha
que seu pai guardava no quintal. De repente, de todos os cantos apareceram mais moleques
do São Benedito, mas, a essa altura, os Passarinho já tinham
passarinhado.
Programamos a revanche. Preparamos trincheiras no largo,
armazenamos em cada uma delas achas de lenha, colocamos vigias com binóculos bem no canto
do morro, de onde se tinha a vista privilegiada do estádio da
Caldense e daqueles que poderiam vir da Vila Cruz, subindo a
rua São Paulo.
Não houve a revanche. Mas a
imagem do Euclides, enfrentando sozinho os Passarinho, me
acompanhou a vida toda. Anos
atrás, soube que o Euclides tinha
morrido de enfarte, antes dos 50.
Mas nessas noites de feriado, em
Poços de Caldas, olhando o largo
São Benedito, vi Euclides, vi
Laurinho, que um desastre besta
matou, o Afonso Celso, levado
por uma bala perdida no sul do
Pará. E me lembrei de que há
muito tempo não tenho notícias
do Rusi, do João Maizena, do
outro João, do Toni, do Paulo
Nei. E de mim.
Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br
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