UOL


São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Crise da infra-estrutura

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Os setores de energia, de transporte aéreo e de comunicações são elementos infra-estruturais importantes do poder dos Estados e essenciais na expansão dos mercados nacional e mundial. A escala e a natureza sistêmica da operação dos serviços de infra-estrutura sempre requereram alguma forma de intervenção do Estado, mesmo no mais liberal e poderoso deles -os Estados Unidos. No ciclo de expansão da economia mundial no pós-guerra, esses serviços não só passaram a ser objeto de regulação, planejamento e financiamento de agências públicas nacionais ou internacionais como, em vários países europeus, asiáticos e latino-americanos operaram com empresas de propriedade estatal.
A desregulamentação tarifária (em dólar), o enfraquecimento dos mecanismos de regulação e planejamento e a liberalização financeira foram acelerados a partir dos anos 80 (depois da restauração neoliberal Reagan-Thatcher). Esse processo geral de liberalização provocou uma concorrência predatória, que levou setores (e empresas) a uma expansão desordenada e foi responsável pela falência de várias corporações mundiais nas crises financeiras do final do século 20 e do começo do atual.
No Brasil, a situação agravou-se em decorrência de um processo caótico e irresponsável de privatização. Os leilões das estatais foram feitos no auge do ciclo de valorização de ativos nas Bolsas de Valores (puxados pela bolha especulativa de Wall Street) e com o real sobrevalorizado em relação ao dólar. As filiais estrangeiras financiaram suas aquisições tomando empréstimos a curto prazo dos bancos internacionais, os chamados "empréstimos ponte" realizados em mercados "offshore". De acordo com essas "regras do jogo", os passivos em dólar do Brasil passaram a ter dupla contagem: a do IDE (com direito a remessa de lucros) e a dívida privada de curto e médio prazo das empresas (com obrigação de pagamento de juros e amortizações).
A rolagem das dívidas privadas depois da crise cambial brasileira de 1999 (que se seguiu às crises russa e asiática) foi feita com prêmios de risco crescente que agravaram a situação patrimonial das empresas devedoras em dólar e o balanço de pagamentos do país. A conversão de parte das dívidas em investimento direto, como ocorreu em 2001 e em 2002, representava um esquema apenas de ajuste contábil, e não de financiamento e de investimento direto adicionais.
As privatizações do setor elétrico, em particular, fracassaram rotundamente quando os pilares de sua arquitetura financeira -valorização patrimonial, câmbio fixo e endividamento- vieram abaixo. A precariedade do modelo de regulação do Mercado Atacadista de Energia (MAE) só ficou manifesta depois do racionamento. O impacto na estrutura de preços das geradoras -com as sobras de energia que se seguiram à redução de consumo- e as dimensões da crise econômico-financeira das principais distribuidoras só foram devidamente avaliados no começo do governo Lula, já no primeiro semestre de 2003.
Estudos para a construção de um novo modelo institucional do setor elétrico como um todo estão em curso no Ministério de Minas e Energia. Medidas de transição para o novo sistema, à medida que os antigos contratos de aquisição de energia forem vencendo, também estão em estudo e não devem ser confundidos com o novo modelo de planejamento e regulação apresentado à discussão e aprovado na Comissão de Política Energética (CPE). As estratégias de negociação das dívidas das empresas nacionais e estrangeiras com a Eletrobrás e com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ainda estão sendo equacionadas, dada a complexidade e a diversidade de situações. A Eletrobrás, por sua vez, está pondo em execução ações de socorro financeiro aos elos frágeis do setor -empresas deficitárias ou sucateadas em regiões vulneráveis como Amazonas, Maranhão, Alagoas e Piauí.
Não é, portanto, correto concluir, como fez o jornalista Elio Gaspari no seu artigo nesta Folha e em "O Globo" de 3 deste mês, pela "Eletrotunga das estatais e dos nordestinos", nem finalizar o seu artigo com a seguinte sentença: "A proposta do governo (leia-se o novo modelo a ser implantado) já produziu um resultado: continua suspenso todo e qualquer investimento no setor de energia". Essa conclusão é até mesmo contraditória com o que o ilustre jornalista escreve no inicio do artigo: "A desordem provocada pela privataria é tamanha que o setor deve algo como R$ 44 bilhões à banca".
As dificuldades gigantescas de refinanciamento dessa dívida, com flutuações cambiais acentuadas (que torna antagônicas as posições das filiais devedoras e das matrizes e bancos credores) já são razões suficientes para a freada do investimento estrangeiro no setor sem descer às tecnicalidades do novo modelo institucional. Uma avaliação cuidadosa dos resultados e da estrutura da dívida das empresas que permita negociação patrimonial complexa, mas possível, é indispensável para recolocar em ordem o núcleo duro do setor elétrico.
Convém lembrar que não estamos mais no período "do despreparo e da ganância que presidiram o desmanche de um pedaço do Estado no mandarinato tucano" (apud Gaspari) e que as condições econômico-financeiras e políticas que levaram o setor elétrico brasileiro à beira da ruptura não devem repetir-se. No entanto o resgate estrutural do sistema requer uma blindagem das empresas deficitárias e um planejamento de curto e longo prazo muito mais rigoroso e cuidadoso do que aquele que seria necessário se o setor e o nível de atividade estivessem atravessando um período de normalidade.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br


Texto Anterior: Opinião econômica: Histórias de braços (e de gente)
Próximo Texto: Luís Nassif: O menino do violão
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.