São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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LUÍS NASSIF

Os violões que se cansaram

O que deu nesses meninos? Quando eu era adolescente, lá pelos idos de 1969, não se falava de outra coisa no mundo do violão. Os irmãos Abreu eram tudo. O Sérgio, com 21 anos, e o Eduardo, com 20, prestes a serem aclamados os melhores do mundo. Seus LPs eram venerados nos círculos violonísticos do país e da região, de Poços a São João da Boa Vista.
Lembro até hoje, fazendo serenata para a namorada na praça de São João, acompanhado pelo jovem violonista Sérgio Assad, que se mudara para o Rio de Janeiro e prometia fazer carreira, junto com seu irmão Odair. Sérgio já impressionava pelo virtuosismo. Mas tudo o que ele queria na vida era chegar perto, apenas perto, dos irmãos Abreu, porque suplantá-los não ousava sonhar.
Seu Assad, pai dos irmãos, juntou a trouxa e mudou-se para o Rio apenas para que os filhos pudessem ser alunos da mesma Adolfina Raitzin de Távora, que burilara os irmãos Abreu. O grande Isaías Sávio, o maior mestre do violão brasileiro do século, e que frequentava nossa casa, em Poços, ficou injuriado de não ter os meninos entre seus alunos. Mas o sonho do seu Assad era que os filhos pudessem seguir a trilha dos irmãos Abreu.
O primeiro professor dos irmãos Abreu foi o avô, Antonio Rebelo, da geração de brilhantes violonistas do Rio, ao lado de Luiz Bonfá, todos discípulos do mestre Sávio.
A segunda mestra foi Adolfina, figura extraordinária, das alunas prediletas do maior mestre de violão do século, o espanhol André Segóvia (1893-1987). Com ela, os irmãos aprenderam técnica e interpretação. Depois, estudaram harmonia com os maestros Florêncio de Almeida Lima e Guido Santorsola.
Adolfina não recebia profissionalmente pelas aulas. Mas só dava aulas para os escolhidos. Foi assim com os irmãos Abreu e, depois, com os Assad. Colocava os meninos para tocar, ouvia em silêncio e, depois, dizia se aceitava ou não como discípulos.
Em 1960, Eduardo Abreu recebeu medalha de ouro no Concurso de Arte Infantil, do Ministério da Educação e Cultura. Em 1967, antes dos 20 anos, os irmãos Abreu receberam o primeiro prêmio do Concurso Internacional de Violão promovido em Paris, França, pela ORTF. Em 1972, apresentaram-se no Festival de Windsor, em Londres, Inglaterra, tocando com o violinista Yehudi Menuhin (1916-1999), o maior de seu tempo. Com a English Chamber Orchestra, gravaram os concertos para dois violões e orquestra de Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968) e Santorsola.
O país já tinha um contingente considerável de violonistas populares. Entre os clássicos havia Barbosa Lima, precoce e que cedo se mudara para os Estados Unidos. Havia também Turíbio Santos, Maria Lívia São Marcos, e não muitos outros.
Mas o duo Abreu fora mais longe do que todos. Foram os primeiros violonistas eruditos brasileiros que podiam ser considerados os melhores do mundo. De repente, acabou. O que deu nesses meninos? Até hoje lembro do meu estupor quando, lá por 1975, informaram que o duo havia se desfeito. Uma chama de incredulidade se alastrou por todos os círculos violonísticos do país. O que ocorrera com nossas duas maiores vocações?
Vieram explicações picadas, porque os jornais estavam distantes do mundo do violão. Disseram para a gente que simplesmente os dois jovens se cansaram da carreira de concertistas, de terem que viajar o ano todo, treinar dez horas por dia, não tomar sol. Assim! Não podia, ora!
Eduardo foi o primeiro a parar, em 1975, e passou a se dedicar à engenharia eletrônica. Em 1993, concluiu o doutorado na Universidade de Santa Mônica, nos Estados Unidos. Deixar o violão brasileiro órfão em troca de um diploma de engenheiro eletrônico? Nem que ganhasse o Nobel da área não supriria a perda deixada no país.
Sérgio continuou tocando até 1981. Depois, abandonou a interpretação e se especializou em construir violões. Tornou-se um dos "luthiers" mais prestigiados do mundo. Mas e seu som? E o som do duo?
Alguns anos depois, os irmãos Assad recuperariam para o Brasil o cetro de melhor duo violonístico do mundo.
Outro dia, ouvi-os tocar com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Lembrei-me das serenatas de São João, meu coração brasileiro bateu ao som de cada corda puxada, com cada detalhe de interpretação.
Mas continuei inconformado. O que deu nos meninos Abreu para nos deixar assim na mão?

E-mail - lnassif@uol.com.br



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