São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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VIZINHO EM CRISE
O economista Miguel Broda, que defende o sistema de paridade, diz que Brasil deveria participar da ajuda ao país
"Socorro do FMI à Argentina é último bote do Titanic"

OSCAR PILAGALLO
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

O pacote de ajuda internacional à Argentina, que está sendo fechado, não muda, por si, a situação de grave crise do país vizinho. A blindagem financeira, como é chamada, é apenas uma chance, que poderá, ou não, ser aproveitada pelo governo para tirar a economia da profunda e prolongada recessão.
A interpretação, mais cautelosa do que otimista, é de Miguel Angel Broda, um dos mais respeitados economistas da Argentina, de orientação ortodoxa. "Essa blindagem é o último bote que sai do Titanic", afirma Broda, dando a entender que o governo não terá outra chance de sobreviver.
Broda, que se define como um economista independente, é defensor do atual sistema cambial, baseado na paridade de um por um entre o peso e o dólar. Mas não aposta mais com a mesma certeza demonstrada nos últimos dez anos que a conversibilidade cambial, adotada em abril de 1991, será mantida.
Broda acha, de qualquer modo, que a Argentina volta a crescer em decorrência da ajuda internacional. No último trimestre de 2001 poderia estar com velocidade de expansão anual de 5%. Mas, em seu cenário, o ano fecharia com crescimento de apenas 1,5%.
O economista, que lecionou na USP entre 1972 e 1981, defende a participação do Brasil na blindagem, possibilidade que no entanto considera muito remota. Tal iniciativa, diz, mostraria visão estratégica do Brasil.
Em seu escritório em Buenos Aires, duas semanas antes de completar 58 anos, no dia de Natal, Broda recebeu a Folha e deu a seguinte entrevista.

Folha - A Argentina ganha a parada ou só tempo com a blindagem?
Broda
- A blindagem, que deverá ser da ordem de US$ 31 bilhões, é muito importante. A Argentina tem uma crise de liquidez muito grande, não consegue rolar sua dívida. Há mais de cem dias o país não consegue captar recursos no exterior. Se o desembolso for rápido e se a ajuda for bem aproveitada pelo governo, a economia poderá começar a melhorar a partir do segundo trimestre do próximo ano. Essa blindagem é o último bote que sai do Titanic. Mas, por si só, não muda a história de 29 meses de recessão.

Folha - Qual o seu diagnóstico da atual crise argentina?
Broda
- A Argentina estava em terapia intensiva na primeira semana de novembro e agora está em terapia semi-intensiva. Isso não quer dizer que vai correr a maratona. O aumento do nível de atividade é o seu principal problema e o termômetro para medir a qualidade da política econômica.

Folha - O cenário da maratona é para um futuro remoto?
Broda
- A Argentina pode voltar a crescer a um ritmo anual de 5% no segundo semestre (do quarto trimestre contra o terceiro). No ano, seria um crescimento de 1,5%. Mas já no primeiro trimestre de 2001, a Argentina precisa voltar a captar recursos internacionais. Se tudo der certo, o país poderá iniciar sua recuperação, mas a sociedade só perceberá isso seis meses depois. Temos que olhar duas coisas: qual o risco argentino e qual a magnitude do conflito social que vamos ter, dado o baixo nível de atividade.

Folha - A crise é estrutural?
Broda
- Não temos uma situação estrutural de depressão. Creio que a Argentina sofreu um choque externo de grande magnitude: houve a valorização do dólar, a desvalorização do real no Brasil, a queda dos preços das coisas que vendemos e a redução do fluxo de capital. Em cima desse choque externo tivemos políticas fiscais e monetárias restritivas, o que agravou o baixo nível de atividade.

Folha - Os pacotes do governo estão mudando essa política?
Broda
- A política econômica é baseada na manutenção da paridade cambial e na manutenção de reformas pró-mercado que se fizeram desde o governo de Menem. O que tem havido é uma mudança de orientação.
Em dezembro do ano passado, quando De la Rúa assumiu, o objetivo prioritário da política econômica era baixar o déficit fiscal. A explicação era a seguinte: baixando o déficit fiscal, baixava o risco argentino, e assim baixavam os juros, o que estimularia as vendas, o consumo a crédito e os investimentos, o que aumentaria a arrecadação de impostos e, assim se teria menos déficit fiscal.

Folha - Mas claramente não foi o que aconteceu.
Broda
- A estratégia era afetar o nível de atividade de maneira indireta, baixando o déficit fiscal. Mas a Argentina teve os dois primeiros trimestres ruins. O PIB caiu, em relação ao trimestre anterior, a uma velocidade anual de 2%. Entre agosto e setembro a equipe econômica foi mudando a orientação sem mudar o rumo. Começaram com algumas medidas de "supply-side economics" (reduzir impostos para estimular o consumo). Aí saiu o programa de outubro, que tem um toque de Reaganomics (a receita do presidente Reagan, dos EUA, nos anos 80, baseada no "supply-side").

Folha - Essas medidas chegaram a dar o resultado esperado?
Broda
- Nunca vamos saber se elas teriam êxito pois a mudança no governo com a renúncia do vice-presidente "Chacho" Alvarez, no início daquele mês, aumentou o risco da Argentina e tivemos que fazer uma nova mudança.

Folha - Essa foi, então, a terceira mudança em poucos meses?
Broda
- Sim. À pitada de "supply-side" se incluíram alguns elementos keynesianos. Como diria meu amigo Delfim Netto nos anos 70, o governo quer empurrar com a barriga o gasto agregado, o que foi chave no milagre brasileiro. A idéia dessa mudança de orientação e da blindagem é de um "trade-off": um pouco mais de déficit fiscal a curto prazo em troca de maior certeza de solvência fiscal a médio prazo.
O Brasil deveria participar da blindagem, o que acho difícil. Seria uma visão estratégica, pois tudo o que acontece aqui o afeta.
O FMI tem enorme dificuldade de entender o que se passa na Argentina, mas foi concessivo sobre a mudança de orientação. O diagnóstico do FMI é que a Argentina tem um problema de liquidez para cumprir suas obrigações fiscais. E vai resolver isso tão mais rapidamente quanto mais rapidamente se recuperar.

Folha - A blindagem é fundamental para os credores?
Broda
- A blindagem externa vai ser da ordem de US$ 18 bilhões. O FMI exigiu uma blindagem doméstica. Exigiu que bancos e entidades de previdência privada se comprometam a comprar dívida e renovar suas amortizações. Devemos ter uma blindagem interna de cerca de US$ 13 bilhões.
O mundo já não tolera mais operações de salvamento, como a Rússia ou do Equador.

Folha - O atual sistema de câmbio é sustentável?
Broda
- O nosso sistema de câmbio é sustentável. Temos tido um mau funcionamento do sistema político, que não tem consciência da gravidade da situação. Se a Argentina conseguir melhorar isso, não vejo nada intrínseco que force a saída da conversibilidade.

Folha - Mas esse câmbio não compromete a competitividade?
Broda
- Não. Não acho que a desvalorização seja um remédio que tenha efeito na Argentina.
A unidade de contrato na Argentina é em dólar. O país pensa em dólar. A poupança é em dólar. As dívidas são em dólar. Qualquer desvalorização nominal com êxito (superior à taxa de inflação) significa uma reengenharia legal complicada. Pode dar certo, mas também pode dar muito errado.
É minha forte convicção que não há na Argentina problema estrutural que faça com que a paridade seja inviável. Mas também é certo que se esta entrevista tivesse sido feita em qualquer um dos últimos dez dezembros eu teria dito com 98% de probabilidade que dentro de 12 meses teríamos a paridade. Hoje não vou dizer isso.

Folha - E a dolarização?
Broda
- Num contexto de corrida contra o peso argentino e de forte perda de reservas, creio que seria melhor ir à dolarização total do que mudar o tipo de câmbio.

Folha - De la Rúa deve superar as dificuldades políticas?
Broda
-De la Rúa não controla os parlamentares e 2001 será complicado para a Argentina devido às eleições parlamentares. Mas precisamos de governabilidade.

Folha - Esse cenário abre espaço para a volta de Domingo Cavallo?
Broda
- Acho pouco provável. Só em uma situação de grave crise. Penso que se o governo decidisse mudar, deveria pôr uma equipe ortodoxa, não alguém heterodoxo como Cavallo.



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