UOL


São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Além da recuperação

ANTONIO BARROS DE CASTRO

O governo conseguiu matar o ovo da serpente da inflação, aprofundou o ajuste fiscal e logrou impedir, até agora, que o real se tornasse sobrevalorizado. Além disso, há uma política de exportações em ação, muito boa, a julgar pelos resultados. E é só.
Não está havendo política de retomada, de crescimento ou de desenvolvimento. Estamos no império do automatismo. A própria economia, revertidas as expectativas, faz acontecer a retomada. De fato, como se pode observar em outros episódios ocorridos no passado (por exemplo, na transição de 1999 para 2000), a transmissão automática de impulsos é muito forte na primeira fase da retomada. E é bem possível que isso tire a economia da prostração em que se encontrava.
Os partidários de políticas industriais ativistas crêem, em sua maioria, que seja necessário, para continuar crescendo, reconstruir setores que ficaram para trás, bem como preparar o terreno para novos investimentos, por meio de grandes obras de infra-estrutura. A essas iniciativas, por sua vez, caberia a abertura de novos espaços para investimentos. Discordo.
Não ignoro que setores estratégicos no crescimento de economias desenvolvidas se encontrem por aqui atrasados ou sub-representados. E nem falo das carências de infra-estrutura, que, após mais de 20 anos de estagnação, são gritantes. No meu entender, contudo, quem acha que é preciso construir ou reconstruir setores e/ou fazer grandes investimentos para criar espaços e oportunidades para o investimento privado está dando razão a Gustavo Franco. Afinal, quase 60 anos depois de Volta Redonda, ainda é preciso induzir grandes investimentos para gerar oportunidades para as empresas? Será que as empresas, até hoje, não desenvolveram a capacidade de criar e explorar suas próprias oportunidades, seus próprios espaços? Da sua experiência ainda não brotam oportunidades? Se é assim, industria não "pega" neste país.
Isso contraria, no entanto, o que observo há muitos anos. Acho que a Gradiente, a Acesita, a indústria de calçados do Vale dos Sinos, a Sabó, a Marcopolo, os produtores de granito do Espírito Santo, as flores do Ceará, a indústria de software, as chamadas marcas emergentes, ou tubaínas, e por aí afora guardam possibilidades inexploradas, que estão vindo à tona e virão ainda muito mais com a retomada do crescimento. Todas têm e estão expandindo um repertório de possibilidades, de conhecimentos incompletos. Não há como medir esse potencial. Mas há, no meu entender, que transformá-lo em referência da política de crescimento. Pela simples razão de que aí reside o filão inesgotável da expansão. Essa é uma fronteira naturalmente inesgotável, porque se renova ao ser explorada.
A visão do passado era criar, pela acumulação de capital, muito apoio público, capacidade de produzir. E tinham razão os seus defensores. Era preciso forçar a substituição de setores de baixa produtividade por setores de produtividade média muito maior. Mesmo que fosse necessária ampla proteção. Afinal, acelerar a saída do café e da cana era também acelerar a criação de competências empresariais, de capacitação de técnicos e de trabalhadores em geral.
Isso, hoje, não tem mais sentido. É preciso ter e desenvolver capacitações para, à medida que estas prometam ou comecem a dar frutos, sair em busca de recursos para instalar ou expandir a capacidade. E nesse ponto o BNDES continua fundamental como o banco da capacidade. Mas faz pouco sentido induzir (forçar), como nos anos 50 ou 70, a mera criação de capacidade. Nós temos enorme potencial reprimido. Foram 23 anos de frustrações. Nesses 23 anos a indústria lutou para sobreviver; atravessamos um deserto em meio a tempestades. Agora, as políticas têm de mirar o potencial. O verdadeiro motor do crescimento é o aproveitamento do potencial acumulado.
Essa é, em suma, uma economia diversificada, dotada de uma herança muito rica. Mas isso só começa a contar mesmo a partir da segunda etapa da retomada e, sobretudo, daí por diante. Ou seja, à medida que se sai do automatismo e se ingressa no terreno das conjecturas acerca do futuro. Daí por diante, as expectativas empresariais propriamente ditas, incertas como é próprio das expectativas, passam a ter uma importância primordial. E há que assisti-las, apoiá-las com os apoios leves e múltiplos -que os poderes públicos devem aprender a dar. Não é mais fundar a economia. A economia está fundada e as empresas que a integram já passaram pelo crivo de muitas crises. Nós estamos na indústria há 60 anos. As empresas têm possibilidades que não estão sendo implementadas porque nem começamos, de fato, a sair do deserto. Ainda quando modestas, elas têm diante de si um leque de possibilidades. Esse leque contém não apenas o futuro como, concretamente, a possibilidade de a economia como um todo vir a crescer rápida e sustentadamente.
Esse tipo de enfoque obviamente não omite as multinacionais. Devemos cultivar um ambiente capaz de estimulá-las a ampliar seus investimentos no país -o que difere enormemente (e é muito mais barato) de comprar o passe para novos setores. O objetivo, simplesmente enunciado, é que elevem a posição das subsidiárias domésticas na estrutura mundial das respectivas corporações. E isso significa, na prática, enobrecer produtos e trazer para o país funções corporativas superiores. Somente fabricar vale cada vez menos. É brigar por inteligência. Há uma Província chinesa que anunciou recentemente que tem US$ 6 bilhões para atrair novas plantas. Dá para encarar? Creio que não. Atrair plantas, aliás, é algo que JK fez brilhantemente: há mais de 40 anos. O Brasil deveria ter políticas concebidas para uma economia há muito tempo operando abaixo de suas possibilidades e imensamente heterogênea. Durante a longa estagnação, aliás, aumentou a heterogeneidade (e aí reside uma das matrizes da brutal desigualdade que nos estigmatiza). Por outro lado aumentou também a experiência empresarial, o know-how e, genericamente, a capacidade de resolver problemas: o potencial, definido da forma mais ampla.
Não somos mais novatos, industrialmente temos meia-idade. Se é verdade que podemos estar saindo, como creio, de 23 anos de intermitente asfixia de demanda, devemos dar prioridade às possibilidades que acumulamos.


Antonio Barros de Castro, 65, professor titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


Texto Anterior: Pólo Sul: Ar-condicionado derruba presidentes
Próximo Texto: Gurra verde: Lula sanciona lei da soja transgênica
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.