São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma reforma do regime de metas de inflação

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O banco Central tem sido muito criticado por intransigência e erros de avaliação da conjuntura. A decisão de ontem, de reduzir os juros básicos apenas simbolicamente, não será suficiente para amainar as críticas.
A que atribuir a inflexibilidade do BC? Uma razão, relativamente pouco comentada, é o receio de que, em 2004 ou 2005, as metas de inflação venham a ser novamente descumpridas.
No Brasil, o regime de metas de inflação é aplicado, desde 1999, com um intervalo de tolerância de 2 ou 2,5 pontos percentuais acima ou abaixo do objetivo central. Nos últimos três anos, a taxa de variação do IPCA ficou sempre acima do teto do intervalo. Se as metas de 2004 ou 2005 não forem atingidas, o que sobraria da credibilidade do regime?
É possível que se consiga manter a inflação abaixo do teto de 8% em 2004. Mas a que preço? A controvérsia cada vez mais acirrada a respeito dos efeitos negativos da política monetária sobre a atividade econômica sugere que talvez tenha chegado a hora de repensar o regime de metas.
Os problemas principais do esquema em funcionamento parecem ser os seguintes. Primeiro: desde o governo passado, a tendência tem sido fixar metas muito reduzidas, procurando rápida convergência com as taxas de inflação dos países desenvolvidos.
Segundo: o intervalo de tolerância é pequeno. Metas centrais ambiciosas com intervalos estreitos agravam os dois conhecidos vieses desse regime: o viés recessivo e o viés pró-apreciação cambial.
Terceiro: os objetivos são fixados para um horizonte curto (em meados de cada ano para o ano calendário seguinte e o ano calendário subseqüente). Isso também reduz a margem de manobra do BC para lidar com incertezas relacionadas aos mecanismos de transmissão da política monetária e com o impacto de choques econômicos internos ou externos e outros eventos inesperados.
Quarto: o BC vem aplicando o IPCA "cheio", sem nenhum tipo de adaptação. Muitos analistas sugerem o uso de algum cálculo do "núcleo" do índice de preços, com exclusão de itens particularmente voláteis ou outros ajustes. A dificuldade é fazer mudanças críveis no índice de referência em um país traumatizado por uma tradição de experiências manipulativas de "expurgo" dos índices pelo governo.
Esses e outros problemas na aplicação do regime de metas de inflação resultam, em parte, da maneira como o governo fixa as metas. No caso, o "governo" é o CMN (Conselho Monetário Nacional), composto pelo ministro da Fazenda (que o preside), pelo ministro do Planejamento e pelo presidente do BC. Os serviços de secretaria do CMN são exercidos pelo BC.
Fixado objetivo pelo governo, o BC busca então atingi-lo, desfrutando para tal de autonomia operacional (ainda que o BC não seja formalmente autônomo ou independente).
Na prática, porém, o BC domina o processo de definição da meta. Quando há sintonia entre a Fazenda e o BC, eventuais discordâncias do Planejamento não têm grande importância. Como o BC detém o controle das informações e instrumentos relevantes, o Planejamento e a própria Fazenda acabam sendo levados de roldão. O que acontece, essencialmente, é que o BC fixa as metas para si mesmo.
Em 2003, isso ficou ainda mais claro. No início do ano passado, passando por cima do CMN, o BC definiu uma "meta ajustada" para corrigir o excesso de ambição da meta estabelecida no final do governo FHC (nem assim foi possível atingir o alvo em 2003). Essa anomalia deixou transparecer quem realmente decide.
O que fazer? A análise anterior já sugere, de certa forma, a resposta.
Admitindo-se que se queira manter o regime de metas de inflação por pelo menos alguns anos, caberia aplicá-lo de forma mais flexível. Isso significaria introduzir as seguintes mudanças:
a) Definir metas centrais menos ambiciosas e intervalos um pouco mais amplos de tolerância. Por exemplo: um alvo razoável para 2004 seria algo como 7%, com margem de mais ou menos três pontos percentuais. Bastaria buscar uma diminuição gradual da inflação ao longo dos próximos anos. Isso evitaria sobrecarregar a política de juros e diminuiria os seus efeitos adversos em termos de produção, emprego e sobrevalorização cambial. Por outro lado, reduziria o risco de abalos à credibilidade do regime resultantes de sucessivos descumprimentos de metas ambiciosas.
b) Fixar um horizonte maior para as metas, definindo um prazo mais longo e mais condizente com as incertezas que cercam a política monetária em qualquer país e, em especial, em um país em desenvolvimento com as características e fragilidades que o Brasil apresenta. Por exemplo: estabelecer que os objetivos devem ser alcançados ao longo de dois ou três anos (e não no ano calendário subseqüente).
c) Reformar o CMN para tornar a definição das metas mais independente das inclinações e preconceitos do próprio BC. Uma possibilidade seria incluir outros ministros de Estado, mais ligados ao setor real da economia (Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Agricultura, Trabalho, por exemplo), e pessoas representativas do sociedade civil. Por exemplo: dos trabalhadores, do meio acadêmico e do setor empresarial (indústria, agricultura, comércio, sistema financeiro -se bem que este último já está bem representado pelo próprio BC...). A eventual redefinição ou ajustamento do índice de preços utilizado poderia ficar a cargo de um conselho de especialistas de que participassem, além da Fazenda e do BC, técnicos oriundos das entidades públicas e privadas que têm experiência no cálculo de índices de preços de ampla utilização no país (IBGE, FGV-RJ, Fipe-USP, Dieese, por exemplo).
Digito essas recomendações e paro. Sinto que cometi uma imprudência. Volta e meia, o leitor pede sugestões práticas. E, no entanto, quando o articulista se arrisca a fazê-las, o interesse nem sempre é dos maiores. A verdade é que o leitor está sempre em busca de "ovos de Colombo" e não tem paciência para argumentos e sutilezas.
Veremos. Se eu sentir que houve curiosidade real desta vez, volto ao assunto em outra ocasião.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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