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São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Buenos Aires-Washington, escala em Brasília

GESNER OLIVEIRA

Embora buenos Aires e Washington estejam separadas por 8.300 km no eixo Norte-Sul das Américas, o Consenso de Buenos Aires, assinado pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, é próximo ao Consenso de Washington.
É verdade que o objeto dos dois textos é diferente. Lembre-se de que o Consenso de Washington constitui prescrição de dez reformas organizada há mais de dez anos pelo economista John Williamson e execrada pelos críticos das políticas econômicas liberalizantes dos anos 90. O próprio Williamson reconhece que o decálogo proposto é muito limitado, requerendo a promoção de mudanças institucionais e de uma agenda social. Pois o Consenso de Buenos Aires é ainda mais tímido do que essa mais recente versão ampliada do Consenso de Washington.
Mas, apesar do suspense gerado nesta semana, o Consenso de Buenos Aires não é nem poderia ser uma plataforma de política econômica. É um texto diplomático e, portanto, morno e autocontido, mais próximo de uma tarde burocrática em Washington do que de uma noite portenha.
O Consenso de Buenos Aires teria abalado o mercado se houvesse sugestão de flerte com o calote da dívida, mas o documento não dá margem a nenhuma especulação desse tipo. Prevaleceu a posição brasileira, que, curiosamente, não deixou que a contraparte argentina colocasse no texto aquilo que o PT propunha antes das eleições em seu programa de ruptura.
O Consenso de Buenos Aires dá vários recados a Washington de uma perspectiva de Nova York, isto é, cosmopolita e multilateral, na linguagem das Nações Unidas. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, assinaria embaixo. Assim, o documento exalta a declaração do Rio sobre ambiente, a importância do Protocolo de Kyoto e alerta para "...a necessidade de combater as ameaças à paz e à segurança internacionais e o terrorismo, de acordo com a Carta das Nações Unidas". Em franco contraste, é claro, com a política externa da administração Bush.
As manifestações de Brasil e Argentina ganharão peso quando suas ações práticas corresponderem à retórica. Não é o que se verifica na discussão acerca da vaga que o Brasil pleiteia no Conselho de Segurança da ONU. Tampouco se percebe perfeita sintonia entre a posição formal do Mercosul na Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e as manifestações dos delegados de cada país. Da mesma forma, o compromisso com a integração sul-americana está a exigir uma demonstração urgente de capacidade de ajuda prática para a superação da crise boliviana.
Mas o Consenso de Buenos Aires não está condenado ao esquecimento. Isso porque sua criação reflete uma nova fase de convergência entre as políticas dos dois países, assentada em dois fatores fundamentais.
Em primeiro lugar, na percepção acertada da agenda do Grupo de Cairns de que o que mais importa para Brasil e Argentina é o combate ao protecionismo dos ricos, especialmente na área agrícola. Esse deveria ser o ponto de convergência em relação a todas as frentes de negociação, na Alca, na União Européia e na OMC (Organização Mundial do Comércio).
Em segundo lugar, com o câmbio flutuante nos dois países, renova-se a pauta de convergência comercial. É sintomática nesse sentido a declaração do ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) ao jornal argentino "El Cronista" de que "não haverá cotas nem salvaguardas no comércio bilateral". Na mesma direção, os acordos que estão sendo assinados com a Argentina poderiam representar uma renovação dos protocolos dos anos 80 entre as administrações Alfonsín e Sarney.
Grande parte do problema do Mercosul nos últimos anos decorreu de muita formalidade diplomática e pouca ação prática. Se Brasil e Argentina inverterem esse vício histórico da região, terá sido um grande avanço. Caso contrário, é melhor restringir a discussão a uma revanche do Santos contra o Boca Juniors na Copa Sul-Americana.


Gesner Oliveira, 47, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br

E-mail - gesner@fgvsp.br


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