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ARTIGO
O novo desenvolvimentismo
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
COLUNISTA DA FOLHA
Pode ter parecido surpreendente a afirmação de Antônio
Ermírio de Moraes de que está na
hora de o Brasil ter um plano de
desenvolvimento como foi o desenvolvimentismo do governo
Juscelino Kubitschek. Diante, porém, do fracasso da ortodoxia
convencional em promover o desenvolvimento do país, está ficando cada vez mais claro para a sociedade brasileira, cujo sentimento o grande empresário expressa,
que é preciso pensar em uma alternativa.
A ortodoxia convencional insiste em identificar o desenvolvimentismo com o populismo, o
que não faz sentido. O nacional-desenvolvimentismo foi a estratégia que regeu o desenvolvimento
do Brasil entre 1930 e 1980, um período de enorme crescimento e
transformação da economia. A
crise dos anos 80, porém, coincidiu com o início da onda ideológica globalista e neoliberal que vinha do Norte e facilitou sua penetração no Brasil. Em 1986, com o
Plano Baker, a ortodoxia convencional foi transformada em "estratégia de desenvolvimento" definida pelo governo dos Estados
Unidos e suas agências. Era o
Consenso de Washington com
sua propostas de reformas, várias
delas razoáveis se fossem entendidas como visando enfrentar a crise da dívida externa e a crise fiscal
do Estado.
Já nessa época, porém, era possível interpretar o discurso dos
seus ideólogos como uma forma
de debilitar os Estados nacionais
dos países em desenvolvimento,
que, desde os anos 70, com sua
mão-de-obra barata e suas exportações de manufaturados, ameaçavam os países ricos.
Nos anos 90, depois do relativo
equacionamento da crise da dívida externa, a estratégia de desenvolvimento da ortodoxia convencional assumiu caráter mais radical. Buscava-se agora, com uma
"segunda geração de reformas", a
eliminação dos instrumentos do
Estado nacional de proteção do
capital e do trabalho nacionais. A
liberalização deveria ser "aprofundada" em todos os campos e,
principalmente, por meio da
abertura da conta-capital, com a
eliminação de qualquer controle
cambial.
No Brasil, depois da estabilização heterodoxa de 1994, a estratégia que nos era proposta era
"crescer com poupança externa"
e, portanto, com déficit em conta
corrente, já que poupança externa
é déficit em conta corrente. A única preocupação era manter a baixa inflação por meio de uma âncora, que poderia ser ou o câmbio
fixo ou de câmbio flutuante
acompanhado de sistema de metas de inflação. E controlar o déficit público, para que a capacidade
do Estado de pagar a sua dívida
pública interna e externa não ficasse ameaçada.
O resultado dessa política ortodoxa foi desastroso em toda a
América Latina, enquanto países
asiáticos, como a China, a Índia e
a Malásia, que resistiram firmemente às pressões da ortodoxia
convencional, continuaram a se
desenvolver de forma acelerada.
Desenvolvimentismo é estratégia nacional de desenvolvimento.
O Brasil precisa de um novo desenvolvimentismo não porque o
antigo fosse equivocado, mas
porque encontra-se em um estágio diferente de desenvolvimento,
vive uma nova realidade e enfrenta novos desafios. Quais as diferenças fundamentais do novo desenvolvimentismo em relação ao
antigo? E quais suas diferenças
com a ortodoxia convencional?
O antigo desenvolvimentismo
estava baseado no modelo de
substituição de importações e,
portanto, na proteção da conta
comercial. Hoje, os grandes protecionistas são os países ricos. Ao
Brasil, interessa continuar a abrir
sua conta comercial, embora de
uma forma negociada, com a devida reciprocidade, para poder
exportar. Segundo, o Brasil já tem
uma infra-estrutura econômica
razoavelmente instalada, de forma que não há mais necessidade
de o Estado investir diretamente
em indústrias como a siderúrgica
ou a petroquímica, que o setor
privado pode conduzir melhor.
Terceiro, a preocupação com a estabilidade macroeconômica é hoje mais necessária do que no passado devido à instabilidade causada pelos fluxos de capital internacionais.
Em síntese, o mercado e o setor
privado têm, hoje, um papel
maior do que tiveram entre 1930 e
1980: a forma do planejamento
deve ser menos sistemática e mais
estratégica ou oportunista, visando permitir que as empresas nacionais compitam na economia
globalizada.
Já em relação à ortodoxia convencional, as diferenças são muito
mais profundas. Em primeiro lugar, enquanto uma é estratégia de
desenvolvimento, a outra é uma
estratégia de "chutar a escada", é
uma estratégia não-conspiratória
mas efetiva de desorganizar os Estados nacionais dos países que
concorrem na arena global com
mão-de-obra barata.
Existe um ponto comum entre
as duas perspectivas: tanto o novo
desenvolvimentismo como a ortodoxia convencional são favoráveis ao equilíbrio fiscal, mas a motivação é diferente. Enquanto os
primeiros querem, com isso, fortalecer o Estado no plano fiscal, os
segundos estão essencialmente
preocupados com a possibilidade
de pagamento aos credores. É por
essa razão que o novo desenvolvimentismo quer minimizar o déficit público, enquanto a ortodoxia
convencional visa um superávit
primário que mantenha estável a
relação dívida pública/PIB.
A discordância entre o novo desenvolvimentismo e a ortodoxia
convencional começa pela definição de estabilidade macroeconômica. Diferentemente da ortodoxia convencional, que se preocupa apenas com a inflação e o equilíbrio fiscal, o novo desenvolvimentismo está preocupado também com o equilíbrio do balanço
de pagamentos e com um razoável pleno emprego. A ortodoxia
convencional quer independência para o Banco Central, que deve
ter como única responsabilidade
o controle da inflação, enquanto o
novo desenvolvimentismo considera a atual autonomia já suficiente e quer que a lei defina que o
Banco Central, como seu congênere americano, tenha duas responsabilidades, e não uma: além
do controle da inflação, a manutenção do emprego.
Em relação à inflação, a ortodoxia convencional quer combatê-la
com o uso de âncoras, enquanto o
novo desenvolvimentismo as rejeita, ao afirmar que elas apenas
aprofundam as distorções da economia. A ortodoxia convencional
usa o aumento da taxa de juros
para enfrentar qualquer aceleração da inflação, o novo desenvolvimentismo afirma que isso só é
legítimo se essa aceleração se dever a excesso de demanda, e não a
pressões de custos causadas por
depreciação cambial.
Mas, em relação aos juros, há
uma diferença mais profunda. O
novo desenvolvimentismo considera o nível da taxa básica (Selic)
real -que não tem descido abaixo de 9% ao ano- uma aberração, já que países de igual classificação de risco adotam taxas muitíssimo menores, enquanto a ortodoxia convencional considera
essa a "taxa natural de juros".
Enquanto o novo desenvolvimentismo afirma que essa é uma
distorção histórica da forma de financiamento da dívida pública
brasileira, cujo custo fiscal é insuportável, precisando ser enfrentada com o aprofundamento do
ajuste fiscal, a desindexação da
Selic à própria Selic e a criação de
um mercado a termo para essa dívida, ao mesmo tempo em que se
promove a baixa firme dessa taxa
do nível em que se encontra para
um nível civilizado, a ortodoxia
convencional pretende, primeiro,
realizar reformas que reduzam a
"incerteza jurisdicional".
Em termos de política de desenvolvimento, enquanto a ortodoxia convencional pretende que o
principal obstáculo do país é microeconômico e se resolve com
reformas, o novo desenvolvimentismo afirma que o problema
principal está no desequilíbrio
macroeconômico, expresso na dívida pública, na taxa Selic e na dívida externa.
Enquanto a ortodoxia convencional quer desenvolver o país
com o recurso à poupança externa, o novo desenvolvimentismo
critica a estratégia de crescimento
com poupança externa, ao afirmar que o déficit crônico em conta corrente que ela implica leva à
fragilidade financeira internacional e a crises de balanço de pagamentos. Além disso, se não existirem grandes oportunidades de
investimento (coisa que só ocorre
em momentos raros), déficits em
conta corrente resultam em consumo, e não em investimento.
Déficit em conta corrente ou
poupança externa significa câmbio apreciado, que importa em salário real artificialmente elevado
(dada a baixa relativa dos preços
das commodities e produtos com
componente importado), levando ao aumento do consumo e à
queda da poupança interna. Dessa forma, o aumento da poupança
externa é compensado pela redução da interna, transformada em
consumo, e o país apenas se endivida.
A partir dessa crítica, o novo desenvolvimento afirma que o desenvolvimento se financia com os
próprios recursos de cada nação.
O capital se faz em casa. A história
é insistente em demonstrar esse
fato, que, recentemente, teve mais
uma comprovação. Em 1998, absorvíamos 5% do PIB de poupança externa e nossa taxa de investimento era de 19%; neste ano de
2004, a taxa permanece no mesmo nível, mas a poupança tornou-se negativa graças ao superávit em conta corrente. Graças à
depreciação cambial, os brasileiros estão poupando hoje muito
mais do que antes e estão crescendo com despoupança externa, como fazem os países asiáticos.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia e de teoria política
da Fundação Getúlio Vargas. Foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e
Tecnologia.
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