São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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RUBENS RICUPERO

Dedo podre


É preciso adotar política eficaz para acabar com o desmatamento criminoso na Amazônia e no cerrado

NO TEMPO de nossas avós, dizia-se que tinha dedo podre a moça atraída por namorados que não prestavam. Ultimamente, a diplomacia ambiental brasileira parece ter sofrido dessa fraqueza.
Em álcool, resolvemos namorar os Estados Unidos, que nos abandonaram no altar sem abrir-nos o mercado. Ainda por cima nos comprometeram a inocência com sua má reputação. Como a moeda falsa que expulsa a boa, o milho contagiou a cana, que tem agora de se defender o tempo todo pela falta de alimentos ou seu alto preço.
Em aquecimento global, sofremos da falsa reputação de promiscuidade com a China e a Índia, países de matriz energética suja, baseada no carvão. Dependente de hidrelétricas, a matriz brasileira é relativamente limpa e nos daria posição confortável. Jogamos fora a vantagem ao relutar em dizer claramente que boa parte do agravamento do problema provém agora dos emergentes sujos, inclusive das queimadas brasileiras.
O aumento da temperatura global registrado até 1990 (0,76C) se devia, sobretudo, aos gases-estufa acumulados desde o início da Revolução Industrial pelos 30 e poucos países mais ricos. Por uma questão de justiça e maiores recursos, era justo que fossem eles os primeiros a assumirem metas obrigatórias de redução de gases. Contudo, desde 1990, a maior parte do aumento das emissões (73%) passou a vir dos países emergentes.
O alarmante é que, em vez de diminuir, a taxa de emissão vem aumentando mais de quatro vezes a partir de 2000, em comparação com a década de 90 (saltou de 0,7% anual a 2,9%)!
As causas são várias, mas a principal é o crescimento predatório da China, que inaugura uma usina de carvão por semana. Diante disso, como se pode pretender que os campeões de velocidade do crescimento econômico (e poluidor) no mundo -China, Índia, asiáticos- continuem isentos de cobrança da mesma forma que o Haiti ou Burkina Fasso?
O fenômeno é cumulativo: quanto maior o volume de gases lançados à atmosfera, maior será a alta de temperatura e pior a catástrofe. A essa responsabilidade nova tem de corresponder contribuição maior para combater a ameaça global.
A fim de atrair participação mais efetiva dos emergentes, a diplomacia brasileira ajudou a lançar processo mais abrangente do que o anterior, restrito às metas (insuficientes) dos ricos. Na conferência de Bali, o Brasil foi também decisivo em avanços na questão das florestas e na aceitação pelos países em desenvolvimento de metas voluntárias de redução "quantificáveis, reportáveis e fiscalizáveis".
Envergonhada e escondida, essa evolução inegável tem a percepção prejudicada por divisões internas e discurso doutrinário que dão impressão oposta. Ainda não assumimos, na substância e também na forma, posição diferenciada como na conferência do Rio de Janeiro, de 1992.
Naquela ocasião, o Brasil mostrou que se diferenciava dos Estados Unidos, de um lado, e dos emergentes sujos, do outro, recusando ser membro de uma facção para desempenhar o papel de intermediário e facilitador de consenso universal.
Para isso, é preciso: 1º) adotar política eficaz para acabar com o desmatamento criminoso na Amazônia e no cerrado, nossa culpa principal na matéria; 2º) agir não em função da divisão Norte-Sul ou jogos diplomáticos de curto prazo, mas com senso de responsabilidade à altura de ameaça mortal à civilização no Brasil e no mundo.


RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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