|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Os amigos do rei
MARCOS CINTRA
No último dia 3 encerrou-se
o prazo para a filiação partidária dos candidatos nas eleições
municipais de 2004. Cerca de 130
dos 513 deputados federais trocaram de legenda.
Em face de tal demonstração de
instabilidade partidária, jornais e
cronistas esbanjaram copiosas reportagens depreciativas da classe
política brasileira. Alguns chegaram a acusá-la da prática de
"prostituição".
Os partidos em geral não demonstram coerência ideológica
ou programática. São apenas cartórios eleitorais, comandados em
geral pela força do dinheiro ou
pelo espírito coronelista que ainda se acha presente em algumas
lideranças que se tornaram proprietárias do enorme capital econômico e poder burocrático que
lhes é dado pelo governo por meio
da legislação político-eleitoral
brasileira.
Diretamente, o Estado deverá
transferir aos comandantes dos
partidos mais de R$ 113 milhões
em 2003. Até setembro já foram
concedidos mais de R$ 85 milhões.
Além desse expressivo volume
de recursos, o Estado concede milhares de minutos de direitos de
transmissão em cadeia nacional
de rádio e televisão, cujos custos,
por baixo, podem ser estimados
em algumas centenas de milhões
de reais. Os donos das legendas
usam esses recursos a seu bel-prazer, tornando o comando partidário uma das mais poderosas armas políticas do Brasil.
O resultado desse coquetel de
casuísmos e privilégios é a existência de dezenas de partidos, que
não são distinguíveis uns dos outros a não ser pelo tamanho de
suas respectivas bancadas e pelo
fato de serem oposição ou situação.
Os homens públicos devem, por
obrigação, buscar sua sobrevivência política. Amado Nervo (1870-1919) já dizia que "é mais fácil encontrar uma mulher resignada a
envelhecer do que um político resignado a se retirar de cena".
Nesse ambiente, os políticos devem se ajustar a cada movimento
conjuntural, buscando a sigla política mais vantajosa para seus
projetos eleitorais. Trata-se de um
imperativo do ambiente institucional dentro do qual eles vivem.
Os legisladores respondem a esse emaranhado ideológico de maneira ainda mais equivocada.
Buscam engessar a liberdade de
ação dos políticos, restringindo os
atos considerados indesejáveis.
Paradoxalmente, contudo, quanto mais a legislação político-eleitoral busca restringir os desmandos da ação política, mais insolúvel o problema se torna.
As datas fatais para registro de
candidaturas e prazos para determinação de domicílio eleitoral e
de filiação servem apenas para
burocratizar ainda mais o processo político, encarecendo seu funcionamento, aumentando o poder dos caciques partidários e dos
aparelhos burocráticos que controlam.
Boa política e bons políticos não
surgem por acaso. Cidadania,
responsabilidade social e espírito
público são qualidades construídas por cada indivíduo e condicionadas pelo caráter de cada
um.
Se essas virtudes não estão presentes no ambiente político de
uma sociedade, não se deve imaginar que possam ser impostas de
forma coercitiva pela legislação,
nem mesmo quando apoiada em
rígidos esquemas de controle e
punição. Tais qualidades devem
ser conquistadas por meio da disseminação desses mesmos valores
por toda a sociedade.
Há que haver uma reforma político-eleitoral. Mas ela deve melhorar a cultura política, e não ser
apenas mais uma regulamentação burocrática.
Fala-se em proibir mudanças
de partido, na criação de listas
partidárias, em controlar as pesquisas de opinião pública, em tornar ainda mais rígidos os prazos e
datas eleitorais etc. Isso nada resolverá. Pelo contrário, irá agravar o problema. A atual regulamentação de prazos, datas, demonstrações financeiras e outros
procedimentos burocráticos é de
um ridículo atroz. É preciso deixar que a política se depure naturalmente.
As mudanças partidárias não
deixam de ocorrer com a marcação de datas e prazos. Apenas
ocorrem em ondas gigantescas e
em dias determinados, o que aumenta a instabilidade do quadro
político nacional, como aconteceu no último dia 3.
É ridículo estabelecer datas e
prazos para o registro de domicílios eleitorais, que não garantem
familiaridade nem fidelidade aos
objetivos e anseios dessas comunidades. O que muda se a alteração é feita um ano ou dois anos
antes do pleito? O único resultado
prático é tornar o cálculo político
mais incerto e as escolhas e estratégias mais difíceis -e, portanto,
menos seguras para os eleitores.
O sistema político brasileiro necessita urgentemente de um choque duplo: liberdade e responsabilização.
A liberdade implica deixar cada
político assumir suas ações e, assim, responder integralmente pelo que faz perante seu eleitor.
Apenas com ampla liberdade de
ação e de movimentação será
possível vislumbrar quem é quem
na política brasileira.
O caminho certo é deixar a classe política mais solta para poder
formar partidos livremente, associar-se irrestritamente, candidatar-se até de forma avulsa, como
acontece na maior democracia do
mundo, os EUA. As leis da sobrevivência, da evolução e da especialização naturalmente irão formar os agrupamentos políticos
relevantes. Os restantes se tornarão figuras secundárias, que naturalmente se anularão.
O Estado deve cessar todo e
qualquer apoio e ajuda financeira ou de tempo de televisão comercial aos partidos. Apenas nas
eleições deve regulamentar seus
custos e financiar integralmente
as campanhas eleitorais, neutralizando o impacto eleitoral do poder econômico.
Nesse ambiente, os partidos de
aluguel certamente desaparecerão como em um passe de mágica.
É preciso acabar com os cartórios
eleitorais e deixar a política correr seu curso natural entre pessoas livres, e não entre condestáveis agraciados pelo rei.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor pela Universidade
Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, é secretário das Finanças
de São Bernardo do Campo e autor de "A
verdade sobre o Imposto Único" (LCTE,
2003). Escreve às segundas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
Internet: www.marcoscintra.org
E-mail -
mcintra@marcoscintra.org
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Dicas Folhainvest: Analista altera carteira e sugere investir em papéis da Celular Sul Índice
|