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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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LUÍS NASSIF

Personagens do Real

No dia em que alguém for escrever sobre a tragédia brasileira nos anos 90, a maneira como governantes jogaram pela janela a maior oportunidade que o país teve para romper com o atraso, capítulo especial terá de ser dedicado a quatro personagens: Pérsio Arida, Gustavo Franco, Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan.
Houve uma disputa entre os dois primeiros sobre os rumos do Plano Real, especialmente da política de câmbio. Sem compreensão dos processos macroeconômicos, até pela pouca experiência na área pública, Franco venceu, Arida saiu em silêncio do governo. Durante quatro anos viu, mês após mês, o desastre avizinhar-se, o mesmo desastre para o qual ele alertara no início de 1995, caso a política cambial não fosse alterada. Assistiu a multidão dos cretinos das planilhas invocando o dogma da política cambial, como se fosse peça central da magia do Real. E ele, pai do Real, se calou.
Arida é figura singular no universo da geração de economistas brasileiros pós-ditadura. Foi o mais brilhante deles, o criador do Real, e o que menos procurou se beneficiar política ou financeiramente do poder granjeado.
Desde o início de sua carreira, nunca teve paciência para operar a mídia a seu favor. Não se deslumbrou com a fama da vida pública, e, como já admitiu certa vez, nunca gostou do jogo da política e de suas fronteiras sempre nebulosas entre verdade, dissimulação, manipulação e mentira.
Em 1995, ainda não tinha noção do que viria a ser a crise da Rússia ou do LTCM (Long Term Capital Management, fundo de hedge que faliu em 1998). Mas sabia que a âncora cambial não era necessária na extensão do que se imaginava para sustentar a estabilidade do padrão monetário e que a liquidez internacional era um fenômeno cíclico que mais cedo ou mais tarde iria se reverter.
Alertou o governo sobre isso. Disse que a história já demonstrava à saciedade que regimes de câmbio fixo tipicamente naufragam em anos eleitorais. Sua proposta era criar uma banda larga (R$ 0,92 a R$ 1,10, na partida) e ir ampliando aceleradamente ambos os limites para que, quando da eleição presidencial de 1998, já se estivesse na prática em livre flutuação. A alternativa, segundo sua visão na época, seria amargar juros altíssimos e enfrentar os efeitos de uma crise cambial que ocorreria inelutavelmente mais cedo ou mais tarde.
O estilo de falar de Arida é pouco afirmativo, de quem entende os limites do seu próprio conhecimento, depois de ter sido jubilado pelo Plano Cruzado -uma experiência de laboratório na qual entrou auto-suficiente e saiu humilde. O de Franco era temerário, exuberante, fatal como a certeza cega e inexperiente em uma cabeça inteligente. E os gestores -Fernando Henrique Cardoso e Malan- eram ouvintes superficiais, acadêmico-burocráticos, desatentos até.
Nas noites frias de São Paulo, em desabafos com alguns poucos confidentes, o brasileiro e economista Arida tem consciência de que fez muito pelo país. Mas sabe que poderia ter avançado mais, que deveria ter encontrado um meio-termo entre a crítica bombástica e o silêncio para denunciar a grande farsa que jogou o país em uma noite que destruiu a única chance da nossa geração.

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