São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Euforia descabida, insanidade em marcha

LUCIANO COUTINHO Os mercados de crédito e de capitais foram insuflados por liquidez abundante e barata após os atentados de 11 de setembro do ano passado. Sob a liderança do Federal Reserve, as taxas do overnight foram generosamente reduzidas pelas autoridades monetárias dos países centrais durante várias semanas para garantir a liquidez dos segmentos de mercado sujeitos a uma forte onda de aversão ao risco.
Porém, já a partir da última semana de outubro e, claramente, desde novembro do ano passado, os mercados inverteram espetacularmente as expectativas pessimistas. Firmou-se um sentimento de que a economia mundial iniciaria uma recuperação acelerada sob a liderança dos Estados Unidos e de que, após a fácil derrubada do governo taleban no Afeganistão, diminuiria duradouramente o risco "político" global. Essas expectativas otimistas não foram perturbadas pela perspectiva de "default" da Argentina -fato esperado e logo descontado. As taxas de risco começaram, então, a cair; os investidores trocaram rapidamente os títulos do Tesouro por papéis de alto retorno/risco e as Bolsas subiram expressivamente recolocando a relação preço-lucro próxima aos seus recordes históricos. O colapso da Argentina contagiou apenas marginalmente os mercados emergentes. Capitais voltaram a fluir para o Brasil, e a nossa taxa de câmbio entrou em trajetória de apreciação.
Nestes primeiros meses de 2002, os mercados persistiram operando com essa expectativa otimista de recuperação americana e do resto da economia mundial. A interrupção da queda do emprego nos EUA e os sinais de confiança crescente por parte dos executivos americanos facilitaram a absorção de problemas incômodos como foi o caso da Enron. É pertinente indagar: estarão os mercados preparados para uma frustração dessas expectativas favoráveis? As economias centrais poderão resvalar outra vez para uma recessão ou enveredar por um cenário desgastante de anemia econômica?
As respostas são pouco animadoras. Um conjunto de riscos está sendo subestimado. Desde logo, é preciso recordar que o longo período de expansão dos gastos privados de consumo e investimento nos anos 90, especialmente nos EUA, se fundamentou em um endividamento crescente das famílias e das empresas. A exuberante valorização das ações (que hoje representam cerca de 35% da riqueza das famílias americanas) mascarava a percepção de aumento do risco para os tomadores de dívida. Até o presente, a superliquidez com juros muito baixos produzida por mr. Greenspan tem sustentado os preços dos ativos e facilitado sobremaneira a rolagem das dívidas. Não obstante, se a recuperação da economia estancar, os preços da riqueza podem voltar a cair e o crédito pode ficar seletivo e escasso. O grau de deterioração financeira do setor empresarial americano já é preocupante (volume alto de inadimplência em um ritmo de US$ 100 bilhões por trimestre). Ainda não se pode descartar um círculo vicioso entre quedas de preços dos ativos, "crunch" de crédito, retração de gastos, quedas de lucros... Esse risco não é desprezível, pois uma retomada firme da economia com expansão sustentada do consumo requereria, na margem, que as famílias voltassem a se endividar e que as empresas voltassem a investir substancialmente, dispondo-se também a contrair mais dívidas, o que parece pouco plausível. É mais provável que o desempenho da economia americana (e mundial) venha a ser medíocre e oscilante. Os mercados ainda não precificaram esse cenário.
No plano político, a insana escalada do conflito na Palestina, promovida pelo sanguinário governo Sharon, com a complacência dos EUA e da Europa, recolocou em alta o perfil do risco "político". A subida do preço do petróleo já o exprime.
Do lado positivo, na esfera econômica, registrem-se a solidez dos sistemas bancários nos EUA e na Europa (o sistema japonês, como é sabido, está moído), a existência de uma folga fiscal para aumentar gastos (excetue-se, outra vez, o Japão) e a sabedoria do presidente do Fed. Alan Greenspan já acenou com a manutenção da baixa taxa de juros (de 1,75% ao ano) na próxima reunião de 7 de maio (enquanto isso, nós aqui na
tropicália, infelizmente, não podemos baixar a nossa). Esses fatores podem contrabalançar um ao outro até certo ponto, mas não asseguram o cenário de recuperação firme e sustentada. Mas, se há sabedoria na gestão econômica, persiste a insensatez no plano político. A carnificina no Oriente Médio aguça os riscos. Faz imensa falta um líder americano responsável, capaz de impor uma paz justa (com base na proposta da Arábia Saudita) por meio da única forma possível: uma ocupação direta da área de conflito por uma força internacional de paz sob o comando da ONU (Organização das Nações Unidas).


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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